Foto de Ana Duarte



Já estamos em mundos paralelos


Gostaria que soubesses onde vivo

como vivo

gostaria que visses o lugar 

e a cadeira onde me sento

depois do almoço quase sempre

___ quando há sol

agora que é inverno

são umas horas gloriosas

um livro sobre os joelhos 

e este nada

este simples prazer compara-se

a momentos felizes, completos

que vivi antes. 


Gostaria que soubesses onde vivo

como vivo

gostarias que visses nessas imagens

o teu próprio lugar

o teu próprio tempo

que chegará sem que esperes

em que te encontrarás talvez sozinho 

e em que farás desse desabrigo

um lugar preenchido

apenas por ti

um tempo de companhia a ti próprio 

inventando técnicas 

para enfrentar a solidão. 


Gostaria que soubesses onde vivo

como vivo

gostaria que visses como mantenho

uma certa pureza de princípios 

e de hábitos 

que confirmam uma certa rebeldia

perante a vida

condenada à derrota ___ é certo

mas ainda assim

uma afirmação de vida

condenada à morte ___ é certo

condenação igual para todos ___

___ uma injustiça. 


Gostaria que soubesses onde vivo

como vivo

e depois irias à tua vida meu filho

abandonando este mundo paralelo

onde nos vemos

mas não nos tocamos

a não ser com o olhar.



 




 Voltarei hoje

à hora do costume.








Herberto é a poesia


Há poetas

que vão grotescamente

para além de Herberto 

que vão convencidamente

para além da poesia ___

___ cantando. 

Há poetas

que enganam os seus amantes 

que retalham as ideias

que falham nas palavras

que confundem e traem

os amantes da poesia. 

Como em todos os produtos

a contrafacção é barata

está ao alcance de todos

e não carece de imaginação. 

Quero que os Beatles regressem.




 



 





O meu primeiro desgosto


Tinha três anos

foi o primeiro acidente

da minha vida

     pisei um caracol grande

     que eu protegia ___

     ___ chorei. 

É a lembrança de mim

mais antiga e má 

tão má que não compreendo

como há pessoas

que comem caracóis.



 


 Foto do autor do texto




Três perguntas


Ouviram-me chorar ___ e depois? 

Só não chora quem não tem olhos! 



Desde quando te lembras de ti? 

Pergunto-me sem medo da resposta. 



Por que verdades te bates

sendo tu tão ambíguo e inconstante?






 Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Em silêncio 


Em silêncio 

descubro coisas esquecidas

guardadas em caixas da memória 

revejo-as

identifico-as

e ponho-lhes etiquetas. 

Numa caixa guardo a memória 

apenas a memória ___ já ténue 

de um girassol morto

     etiqueta FLOR ANTIGA

noutra caixa guardo letras soltas

de palavras amáveis ___

___ que ainda não perderam a cor 

     etiqueta SONS AINDA NOVOS

noutra caixa guardo a memória 

de mim próprio com muito pó 

     etiqueta FOI VERDADE. 


De tanto rever se fez noite 

e mais esta noite guardei

em outra caixa ___ enorme

porque já tinha muitas e muitas noites 

vigiadas

tristes

saudosas

alegres

umas escuras outras iluminadas 

     etiqueta NOITES RARAS. 


Selo a lacre a minha memória 

e digo baixinho

     o que passou passou.