Foto de Ana Luís Rodrigues


 O amor é um país longínquo e estranho
exuberante e irreal
com um exigente nível de vida
sem cuidados paliativos para o desgosto
autoritário para poder governar 
frio nas separações ___ violento até 

o amor é um país longínquo e estranho
de onde viemos
e onde não regressaremos. 






Em caixas de cânfora 
trago bordados da Palestina
entrançados com linhas de sangue
em panos das vestes inúteis 
dos que morreram
são bordados com motivos
da dor antiga
quase tradicional de
Homens 
Mulheres
Crianças 
que não páram de bordar há décadas 
a história do desespero
em panos das vestes inúteis 
dos que morreram

comprem senhores
os bordados da Palestina 
em caixas de cânfora 
o stock é limitado!


 




Por cansaço inútil 
deixei de encorajar as ideias
deixei de usar as palavras
depois deixei de viver com o corpo

ainda não percebi
se alguém desistiu de mim
ou se alguém me matou
deixando-me vivo. 





(continuação) 


as religiões se extinguirão aos poucos na directa medida 
em que o Amor se desenvolva e preencha o nosso espírito 
delas ficará a arte nas suas formas plástica e musical
o sangue da beleza que fará viver
os tristes
e os solitários 

um dia o homem e a mulher inventarão o Amor
como base da comunicação universal
e entre eles inventarão os seus sucessores
como um acto de Amor. 


 




(continuação)


com a invenção desse Amor todas as formas de agressão 
se tornarão reprováveis e com isso 
as fábricas de máquinas para matar
serão reconvertidas para o fabrico de bens
que criem conforto à vida das pessoas

o diálogo entre mães e pais e entre estes e os seus filhos 
será sempre um acto de Amor e da fruição das ideias

os governantes do mundo conviverão
como uma grande família em que todos ajudarão todos
a viver ___ ao invés de uns viverem da pobreza dos outros


 (continua)


 



Um dia
o homem e a mulher como seres humanos
que vislumbram a possibilidade de se aperfeiçoarem 
como seres inteligentes inventarão um novo sentimento 
a que darão o nome de Amor 
numa forma superior desenvolvida e inquebrantável

e essa será uma das maiores empresas da humanidade 
que trará ao mundo benefícios incalculáveis
com esse invento o ser humano tomará esse
Amor Superior como fundamento de todos os seus actos
será um bem gratuito à disposição de todos sem restrição de
quantidade
forma
ou lugar 

 

(continua) 

 

Henri Matisse - Ícaro



A peça foi levada à cena
era violenta a trama
o empenho e o calor da representação 
foi teatral e a apoteose
aconteceu com tal realismo
que todos os espectadores morreram
menos um. 




IA


Ouvi dizer que a partir de agora
vamos todos ter apenas um nome
teremos de escolher um 
dos que ainda temos
e os outros serão apagados

daqui para a frente seremos grupos
quando chamarem um nome
iremos todos os iguais
eles não sabem
mas assim seremos mais fortes

não esqueçam 
os nomes que vamos perder
ainda iremos recuperá-los. 


 



É estranha e imprópria a nudez do mundo
baixem os olhos ou olhem para o céu 
mantenham as crianças em casa
 
resistam
até que os homens que despem o mundo
sejam prisioneiros da vergonha. 




IA




Nunca te vi chorar
nem mesmo quando te assassinei
a golpes de palavras 

também sem lágrimas conservo 
as cicatrizes na minha paisagem 
como um campo de trigo ondulante

se um dia chorares
deito fogo à seara
e regresso. 



 

IA



Numa prisão uma mulher borda 
um bibe de criança que ela própria costurou
escreve em ponto cruz a palavra 
     saudade
em fina e azul linha com que escreve 
o tempo que lhe falta
cada ponto é um sorriso do seu filho 
cada dia é um ano
o tempo longo vai tornar o colo inútil 

a mulher embala sem corpo essa saudade. 


 


IA



Durmo sempre do mesmo lado da cama
como se dormisse do lado norte
durmo a minha insónia contigo ausente
como se tivesses partido do sul
para mais longe. 



Foto do autor do texto



Acontece por vezes quando a memória 
nos trás uma palavra
o nome do amigo que já não está 
uma referência triste sobre outra coisa
e um finíssimo raio de luz
ilumina um lugar em nós num vale 
ou numa montanha do nosso mapa
essa luz que nem sempre existiu
mas durante anos iluminou tudo
vencendo todas as sombras
sem que déssemos por isso

essa finíssima luz era  o brilho da felicidade 
naquele tempo que depois  
com a sua escancarada boca
devorou
hora a hora
ano a ano
o que tinha para devorar

até que um dia esse finíssimo raio de luz
ilumina uma pedra incomoda 
que se movimenta e soa como um eco
como um ser que trazemos dentro de nós 
num lugar recôndito do nosso mapa
ou como uma areia que se contém 
numa ampulheta que escorre 
para um lado ou para o outro
conforme nos erguemos ou nos deitamos
passando rapidamente na sua lentidão 

os outros dormem ou acordam
com as suas pedras e as suas areias
em vez de um raio luminoso
e encontramo-nos e estremecemos
com a nossa imagem 
numa praça qualquer do mundo
um lugar onde nunca estivemos juntos
mas que a minha vontade me faz acreditar
num quadrado de terra como uma praça maior
onde estarei de facto rodeado dos espectros
dos quais serei um ou talvez mais do que um

um finíssimo raio de luz
escreve no chão o meu nome
e imagino agora que estás ao meu lado.


 


Foto do autor do texto



Há momentos da vida que deveriam ser breves
e que não deveriam apanhar-nos descompostos.




Foto de Daniel Filipe Rodrigues 



Um homem velho em silêncio 
está sentado à porta da sua casa
contempla o céu e o campo
o lugar de toda a sua vida
árvores ao longe
arbustos mais perto
e muito mato 

uma mulher nova chega e pergunta
     pai o que está a fazer tão parado
     não se quer dedicar a nada
     ler o jornal
     tomar um chá 
     ? 
o pai responde
     não filha
     estou a consertar os meus olhos
     ! 



 

IA 



Pediste-me para te deixar viver um tempo
no meu imaginário 
e disseste-me isso enquanto caminhávamos
à volta do jardim curto do teu bairro
sentávamo-nos de vez em quando
para descansar as nossas falas 
e permitias que tocasse os teus seios 
ao de leve porque ainda era dia
e tínhamos o futuro desse dia
todo inteiro para nós 

e outra vez 

à volta do jardim curto do teu bairro
elogiavas a leveza dos meus passos
e o tom do meu silêncio 
assim como um incenso para que te deixasse 
viver um tempo no meu imaginário 
e eu disse-te que os teus seios
já estavam vivos no meu imaginário 
e que todos os dias dormia contigo
no meu corpo como se fosse o teu
e te homenageava solitário antes de adormecer 

e de novo 

sentados fizeste questão 
de tomar a minha cabeça no teu ombro
e disseste que bebias o perfume do meu cabelo
para que eu vivesse no teu imaginário 
da mesma forma como tu gostarias 
de viver um tempo no meu imaginário 

no fim do dia 

à volta do jardim curto do teu bairro 
sentados toquei os teus seios menos ao de leve 
porque já anoitecia
e combinámos viver no imaginário um do outro 
por uns tempos enquanto vivêssemos 
beijámo-nos nos lábios intimamente 
porque já era noite

tudo foi simples depois entre nós 
não mais voltámos a ver-nos. 



 

Foto de Daniel Filipe Rodrigues


Os poetas deveriam ter o direito de morrer 
outra vez quando quisessem
sem violência 
os poetas deveriam ter o direito de nascer 
de novo quando quisessem
sem violência 
os poetas seriam assim como uma flor 
que se abre ao sol por vontade própria 
que o segue e que se fecha 
quando já não vale a pena
os poetas deveriam saber tocar piano 
sem nunca terem aprendido
e seriam capazes de transportar 
as sete oitavas na sua cabeça 
que tocariam em simultâneo com
a composição das palavras 

os poetas deveriam subir ao céu 
depois de completado um poema.