Foto do autor do texto



Conquista

O amor é um campo de batalha 
que se conquista palmo-a-palmo
em sucessivos duelos a golpes de ternura
até à rendição. 




Foto do autor do texto


Nega-se o sol na boca do Outono
a difícil aceitação 
da transformação da luz
com a chegada do medo
o escuro que Goya inventou
a trágica camisa branca
no lugar do corpo
e a boca do Outono a mandar
no destino ___ no sol

não sei se é por ser Outono 
mas há um navio abandonado
na boca do Inverno.


 



Foto do autor do texto



Viagem pelo corpo

Deslizo pelos teus braços 
sem tocar a tua pele
vejo um espaço iluminado
dentro do teu peito
e a sombra de dois seios 
que conheço 
encontro o teu ventre florido
cor e céu 
e duas pontes de pele rosa
que passam do teu mundo
para o outro
onde se perde o meu desejo
a seguir tudo é deserto ___
___ gelado. 


 

__________________________________________________________________



António Sena
1941 - 2024

Foto de jornal O MINHO



Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Não é eterno

Nada advém de eterno
daquilo a que chamamos amor

os que se amaram no passado
desconheciam a brutalidade
das palavras que já existiam
no seu futuro comum
e como se magoariam com elas

mas nem por isso
as cerejeiras deixaram de dar flor
as aves rumaram à sua origem
as nuvens pararam o seu caminho
e choveram 
sobre os campos e as cidades
um dia e uma noite 
um dia e uma noite
um dia e uma noite 

nos campos e nas cidades
tudo o que era eterno 
continuou eterno
tudo menos 
aquilo a que chamamos amor.


 


Foto do autor do texto 



A minha imolação 

Coloco-te a um canto da imagem
e deixo à esquerda o mar 
e sobre ti o céu ___ 
___ o mais possível de céu 
depois vou para a alameda
dos que querem pisar o fogo

julguei que podia caminhar sobre brasas
à tua vista
e que os nossos domingos fossem 
a exaltação em que eu percorria 
o caminho do fogo
e tu festejavas a minha bravura

foi infeliz o retrato que fizeste de mim
porque te convenci que poderia
caminhar sobre o fogo
enquanto tu ao canto da imagem
com o mar à esquerda
e o mais possível de céu sobre ti
assistias à minha imolação
até ao último floco de cinza.


 


Foto do autor do texto tomada do documentário NOSSO MUNDO


Calvário 
 
Ao que chamam calvário 
é uma montanha de vozes escuras
é a falta de branco na madrugada
é a sombra de uma cruz na nossa cama
é uma ausência e outra ausência à nossa mesa
é o sangue a queimar-nos
e as artérias a latejarem
são as notícias graves a atravessarem a nossa casa
são risos de criança numa espécie de eco
lá para o norte do mundo
 
ao que chamam calvário 
é a última semana do mês vivida num lugar imóvel. 





Foto de Daniel Filipe Rodrigues



O poema impossivel

Um poema insinua-se
num momento de perigo
o sangue continua o seu percurso
o sexo pulsa repousado e triste 
recordo nomes até chegar ao teu
o mais longo ___ de mais letras
no meu corpo vibra a tua voz 
com inflexões e ecos de catedral
combinámos fazer juntos um poema

mas juntos apenas morremos
tentando a respiração boca-a-boca 
sem vontade morrendo aos poucos
numa chávena com chá já frio
num calendário com a folha do mês passado
na paz ofendida das nossas noites
num momento de perigo
assistimos ao eclipse do poema
com as mãos em liberdade ___ sozinhas. 


 


Foto do autor do texto



Maçã 

A sedução 
é uma maçã avisada
do poder que o fruto tem
numa boca abandonada

inclino-me
ao poder da maçã. 




Foto do autor do texto



Impulso meditado

Estava eu em confortável repouso
respirando como um peixe
em lago cálido 
sobre o silêncio soaram
vozes líquidas 
música 
e vivas
tiraram-me à força 
para dentro do mundo
tudo parecia simples
era noite
tudo deixou de ser simples
era dia
foi por isto que matei deus
aos dezasseis anos. 



 





A consciência 
 
Recebo-te vergastando
com um pé de rosa
a parte adormecida
da tua consciência 
nada receies
alisei o pé de rosa
retirando-lhe todos os espinhos
não pretendo magoar 
a tua consciência 
mas perfumá-la 
 
olha! 
estamos de novo separados.



 


Foto do autor do texto



Onde nasce a poesia

Deixo a tua boca intacta
não precisas de falar

não preciso de palavras

a poesia nasce na cabeça 
não nasce no coração

espera ___ estou a pensar.





Foto do autor do texto




Um segundo

Já não busco nada em lugar nenhum
sou real apenas no momento
e no lugar onde tenho o corpo
o real é não mais do que um segundo

o segundo antes é passado
o segundo depois não existe
tudo está dependente 
do nosso coração a bater

inspiro ___ expiro
e assim vou vivendo segundo a segundo
com o coração a bater.




Foto de Daniel Filipe Rodrigues


Um segredo como um ovo

Foi crescendo um segredo até ser grande
numa concavidade da memória 
um ovo onde se conservam mortos
pequenos segredos a preto e branco
   partidas implacáveis pelo oceano fora
   cartas sem resposta
   músicas escolhidas a correrem no sangue
   madeixas de cabelo sem idade
   desgostos lacrimosos fora do sítio
   um vestido adormecido 
   fotos de beijos em contraluz
e o rosto de um corpo inesquecível 

foi crescendo um segredo tão distante 
como a retroeternidade
afinal a minha memória não cristalizou. 


 



Foto do autor do texto



Feliz a naufragar

Sou feliz nos momentos 
em que fico adulto como tu
em que chego aos teus olhos
sem escada ___ sem asas
sou feliz nos momentos 
em que navego e avisto o teu corpo
quando naufrago e me salvas 
e esperas que encontre chão 
na tua boca aberta como uma casa
é aí que me salvas do tempo
e te salvas também sem tempo
é o momento em que ouvimos atentos
a trompa do farol ___ e a sua luz
e acreditamos que já estamos 
a apagar a nossa saudade.


 


Desenho de Marcos Rodrigues Kassaye



Uma palavra

Quem diria que
uma palavra pesada
lançada sobre o silêncio 
pode ser o clarão 
que apaga um espaço largo 
entre dois corpos. 




Foto do autor do texto


Sobre as minhas mãos 

Desejo que as minhas mãos sejam livres
mas que elas obedeçam 
a todos os desejos do meu cérebro 
que me surpreendam com o resultado 
dos movimentos dos seus dedos
que falem do que o meu cérebro lhes confia
e que mesmo os erros a que dêem execução 
seja o trabalho dedicado
do que lhes foi encomendado 
sem consideração 
por equilíbrio 
por certeza
por contenção 
todos os conceitos lhes serão estranhos 
as mãos não são para pensar
espero a sua dedicação e fidelidade.

 



Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Ausência para sempre

O homem quase velho
está sentado 
tem na sua frente
dois copos e uma garrafa 
o homem fala para um vazio
numa cadeira vazia 
fala para a ausência do seu pai 
pelo nariz do homem 
passou o cheiro do tabaco 
que o seu pai fumava ___
___ ele estava ali

o homem encontra-se
com a ausência do pai depois 
de muitos anos da sua morte 
o homem é já mais velho 
do que o seu pai 
o homem passou a noite 
meditando na ausência do pai 
e por este estar ausente
foi capaz de lhe dizer
o que nunca foi capaz de lhe dizer 
que terminou num sussurro 
     mato-te para sempre meu pai 
o pai riu-se numa nuvem de fumo
coisa que nunca o viu fazer 

o dia levantou-se 
e uma folha de luz entrou 
por entre as cortinas da noite
brilhante mas diferente 
da luz simples do sol
iluminando o lugar do ausente
o homem não resistiu e saudou
a ausência do seu pai 
com um gole de bebida 
e com as suas últimas lágrimas
depois queimou 
todas as fotos do seu pai.