Foto do autor do texto



Artista


Queres-me artista ___

___ não te desiludo


aparo o meu lápis da compreensão 

e desenho o teu retrato

o mais parecido possível


surpreendo-me com o que vejo


então 

pego numa borracha e apago-te toda.





 


E fico por aqui


Eu nunca tomei um café de ocasião com ninguém 

eu nunca comi à mesa com ninguém 

                              [que quisesse negociar comigo

eu nunca fiz visitas a alguém só para não ser esquecido

eu nunca senti a pele de ninguém como se vestisse

                              [o corpo do outro

mas eu já passei os meus lábios por outros lábios frios


e fico por aqui

não posso fazer mais nada do que ser poeta

por isso ontem suicidei-me como um verdadeiro poeta

foi fácil ___ apenas deixei de respirar

aprendi com o meu pai que se suicidou três vezes

antes de morrer às mãos de uma doença humilhante


já vi a Gioconda

já vi a Vénus de Milo

já vi a Vitória de Samotrácia

já vi a fonte de Duchamp

já vi a Guernica


e fico por aqui

porque dia sim dia não 

tudo se prepara em nós para a derrota.









 

 

Foto do autor do texto 


 

O silêncio depois 

Um trecho de Mozart

batatas a assar no microondas

o som longo do chuveiro

uma janela a bater com o vento

o roupeiro com uma porta descaída

pilhas de livros pela escada

a coberta do sofá entornada


Há vultos a passear pela minha casa

é a saudade de um lado para o outro

o silêncio ___ depois o silêncio 

como alguém disse

quando se acaba de ouvir

um trecho de Mozart 

o silêncio que se lhe segue

é ainda dele


Este é o silêncio depois

que fica no lugar preenchido

por um imenso vazio.




Foto do autor do texto



Um salto imortal


Compreendes em mim 

tudo o que não digo 

talvez porque consigas ver 

as minhas mãos nas grades

talvez porque saibas 

que são idênticos

os pensamentos dos prisioneiros 

talvez porque saibas 

que o corpo obedece ao espírito

e não o contrário 


Compreendes em mim 

tudo o que não digo 

talvez porque nos deitamos juntos 

na cama da melancolia 

talvez porque saibas que a prisão 

é do outro lado 

talvez porque ainda nos abraçamos 

por entre as grades 


Aproveitemos a noite 

para nos evadirmos da prisão do tempo 

sem que sejam necessárias as palavras 

e assim daremos um salto imortal 

para o nosso futuro.



 

Foto do autor do texto 



Dormir

Vou dormir nos restos do dia
recosto-me com um livro
apenas com a luz fundamental
respirando devagar
até as vozes das páginas 
me chegarem aos olhos 
 
Depois durmo 
como se ensaiasse a minha morte. 



 

Foto do autor do texto tomada do canal Mezzo



Um conto


Dito-te palavras imorais 

que escreves com os teus dedos 

na minha pele 

num conto erótico 

que é sempre novo 

mas igual.





Foto do autor do texto



Autopunição


Tenho-te ali ___ pendurada

numa parede sobre a mesa 

onde me encontro contigo

quando me sento a comer

Esta é a punição 

que escolhi para mim.





Foto do autor do texto 



Apenas uma hipótese 


Deus não é mais do que uma hipótese 

não é mais do que uma ausência em todo o lado

não é mais do que o amor a um amante que nunca chega

não é mais do que a cratera de uma bomba

não é mais do que uma cidade de órfãos 

não é mais do que uma pobreza santificada

não é mais do que os joelhos em terra dura


Deus não é mais do que uma hipótese 

e só existe quando trocamos os sonhos e o amor

por uma possibilidade de Paz. 




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Fernando Botero (1932-2023)

Foto The New York Times

 

 

 

Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Aceitação da lágrima


Há quem tenha receio dos que choram

dos que inventam uma lágrima 

que inunda o ser dos outros

posto em descanso


isso pode ser poesia 

porque a poesia não se explica

nem é coerente ___ a poesia 

inventa o que nunca foi inventado


a poesia inventa que nós próprios 

assim ___ com uma lágrima

dentro de uma moldura incolor

somos a própria invenção da poesia.



 

Foto do autor do texto tomada do documentário VIDA SELVAGEM



Um círculo branco no céu 

Bem sei que queremos mudar o mundo
e a nossa boca fica obcecada 
com a mensagem que cabe entre os versos
nem chegamos a ser uma fenda na natureza 
somos uma partícula 
que perde cabelo 
que perde dentes 
que desaparece sem que oito biliões 
de outras partículas se apercebam 

 

Há um círculo branco no céu 

que faz de nós homens pequenos. 



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Foto RTP


Natália Correia 

100 anos