Foto do autor do texto




Os papéis da discórdia 


As palavras estavam connosco

sentadas à mesa no chá da concórdia 

as palavras serviam-se

a elas próprias em reverências estranhas 

porque tinham consoantes agrestes 

e arrastadas encostadas a vogais

numa musicalidade metálica 


e nós sorridentes dávamos a boca 

às palavras como se nos beijássemos 

nenhum de nós acreditava

na falência dos sentimentos

com palavras tão concordantes

sentadas à nossa mesa

no chá da concórdia 


Ninguém diria que este chá 

e as palavras de concórdia 

seriam as últimas ___

___ na mesa os papéis da discórdia 

ardiam de palavras incendiadas 

esperando pelas mãos que

os assinassem como uma sentença.




 





Falta o sal


Falta o sal dos dias 

os prazeres primitivos

a grande festa das bocas

as falas sem sentido

a agitação matinal do Verão 


Falta o sal dos dias

dos momentos com 

o peso da transgressão 

e ainda assim mostrar

um sorriso insolente


Ponho a tocar

uma cantata de Bach

afago o meu gato

e adormeço sobre

mais um dia insonso.



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Os velhos teimam em viver

mas têm nos olhos

lágrimas de revolta. 




Depois das propostas do governo

para fazer face ao custo de vida

sem uma palavra para os pensionistas.







 Foto do autor do texto




Um nome para sempre


Nasci em casa

nesse momento confuso

não reconheci 

as mãos enormes 

que me esperavam

Nesse dia havia um céu 

muito longe 

e só mais tarde soube 

o que era um céu 

As mãos que me moldaram

disseram 

     rapaz

só mais tarde

me mudaram o nome

hoje chamo-me

     homem

e tenho um pouco 

de céu só meu

 

Também nasceste 
para mim nesse dia ___

___ depois de tantos anos

partilho contigo o meu pão 

em memória do tempo

em que fomos irmãos.




 


 Foto de Daniel Filipe Rodrigues




Pergunta


O que fizemos nós dos nossos tempos

não é uma pergunta 

é um claro olhar sobre

como consumimos os nossos tempos 


Tu em repouso num jardim duvidoso

de onde nunca saíste 

vivendo as primaveras e os outonos

com a conformação que não deixa

de ser um acto de valentia mas

durante o qual vais morrendo

sem conhecer a floresta

e eu morrendo todos os dias

no inconformismo da floresta duvidosa 

onde não volto nunca mais


O que fizemos nós dos nossos tempos

___ é uma pergunta.




 


Foto de Daniel Filipe Rodrigues 




As palavras aprisionadas


Tenho palavras abafadas 

na garganta

é de noite que elas se prendem

na minha garganta


na minha garganta se assustam

com os faróis do automóvel do tempo 

que roda lentamente 

e se aproxima


e se aproxima 

enquanto Mozart e um cigarro

preenchem as horas de espera

pela evasão das palavras


das palavras necessárias 

ao arremedo de poeta da angústia 

com as palavras abafadas 

na garganta


na garganta calada

com que assisto à passagem

de uma mulher que se equilibra

nua no dorso de um cavalo branco


num cavalo branco ___

___ mas estranhamente 

porque quando partiste nua

foi no dorso de um cavalo negro


num cavalo negro partiste nua  

por aquele caminho

era de dia ___ compreendo agora

porque tenho palavras 

abafadas na garganta.