Foto do autor do texto tomada do documentário VIDA SELVAGEM



O instante


O instante é o compasso da vida

segundo a segundo até ao fim do tempo


o instante é o momento do relâmpago que

nos liga a todos numa corrente invisível 


o instante é a força com que a pequena ave

se liberta da sua prisão e nasce


o instante é uma planície habitada onde 

não se diz a verdade uma vez ou outra


o instante é o ponto em que o coração 

fraqueja cansado de tantos instantes 


o instante não altera a sucessão 

nascer___ viver ___ morrer

qualquer que seja a crença 


mas este instante é sempre novo

o conforto de conseguir um poema

que escrevo sobre o teu corpo 

como se voasse sobre países sem fronteiras.



 

Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Os cais


O cheiro dos cais

é triste e escuro

como as partidas

procuramos nas águas 

o reflexo do outro

do que partiu

e encontramos apenas

a nossa silhueta

trémula ___ sozinha


aceitamos a ausência 

e regressamos

pelo caminho das pedras

de cada uma fazemos

uma palavra dura

na tentativa de construir

um poema que guarde 

o cheiro a alcatrão e óleo 

do cais e da partida


concluído o poema

fica claro que

fomos nós próprios 

que partimos

e que isso ficou

na nossa memória 

com o cheiro 

a alcatrão e óleo 

da partida.



 

Foto do autor do texto



Dia de aniversário 


A memória fiel

é a memória que ainda nos emociona

a memória que ainda nos emociona

é a memória das mãos 

das mãos que dois velhos guardam

no seu colo sob as mantas


eles têm memória das emoções 

de quando eram novos amantes

eles são agora o prolongamento 

da sua antiga juventude mas

é apenas suave toda a exaltação do corpo 

depois de tanta prática do amor


agora são executantes iluminados

de uma nova forma de amar

tudo o que sabem está na memória das mãos 

estão nelas todo o amor que prometeram

para além do tempo 

na memória fiel que ainda os emociona


os dois velhos guardam ainda na língua 

o sabor do outro ___ em segredo

essas práticas do amor 

eram à margem da decência 

tudo foi guardado 

com um nó na boca


hoje estão contentes

porque têm a memória das emoções 

emoções que ainda tocam suavemente

o lugar mais íntimo 

os seus órgãos agora sossegados

murmuram a palavra saudade


os dois velhos são agora dois sábios 

o último capítulo 

de um tratado sobre o amor

hoje estão felizes têm sobre a mesa 

a fatia de bolo de aniversário 

que os filhos lhes deixaram.



 

Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Infância IV


Escondi entre os meus brinquedos 

uma caixinha com os beijos 

que a minha mãe me deu na noite de Natal

guardei-os para os ter

quando eu já for grande.




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Uma vida como um poema de resistência e dedicação. 


Odete Santos


1941

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2023 





Foto de Diário de Coimbra







Foto do autor do texto



Fui condenado


Tomo nota num lugar indelével 

das minhas cobardias

e dos meus heroísmos

tantas páginas preenchidas com umas

tantas linhas em branco de outros

tenho a boca em ruínas 

perdi todos os dentes nesta luta

que já vai longa 

e onde fui condenado

a séculos de fome a cumprir

depois da minha morte.



 

Foto do autor do texto 


Não confiem


Não confiem nos poetas

eles são tal e qual os vírus

que vos invadem o computador 

entram em vós por uma fenda

na vossa sensibilidade

e tomam conta dos vossos arquivos

de pensamentos e sentimentos 


os poetas não são gente de confiança 

são o perigo da apropriação total 

da vossa consciência 

da mudança viciada do vosso olhar

que tudo altera consoante o jogo das palavras 

que vos revelam quanto pobres sois

na imensidade das línguas e dos gestos


os poetas podem até ser assassinos 

do vosso sossego nas águas paradas

nos céus escuros e sem nuvens 

nas noites silenciosas e sem fim

podem ser piores 

que os vírus do vosso computador

porque não há antivírus que os elimine. 


cuidado ___ eu posso contagiar-vos.