Carrego-te 


Carrego-te às costas

desde que dei conta de mim. 

Diria que houve sempre um tumulto

no teu olhar assustado

e eu com pedras na boca

sempre convivi com a chuva

nos meus dias de sol. 

Ainda hoje te carrego às costas

como um sentença 

ditada por ti própria, 

sempre serei um filho ajoujado

de joelhos silenciosos. 

Hoje fujo para Sintra

e não te levo comigo.



 


 Foto de Ana Duarte



Há uma porta aberta


Visitem-me

tragam-me as vossas oferendas

palavras

gestos

lágrimas 

o que tiverem

encontrarão uma mesa

frugal é certo

mas com um pequeno

raio de luz para cada um

entre um pão e

um copo de vinho

a todos servirei

uma obra minha

e a todos na despedida

entregarei um beijo colhido

na minha reserva de saudade.



 






A caminho do Outono dos outros


Com um olhar alcanço tudo em ti

és o Outono mais recente onde

recolho as folhas avermelhadas

e estou alerta para me abrigar

para mim as chuvas são sempre

punitivas. 


Com um olhar alcanço tudo em ti

e registo no lugar onde guardo as emoções 

um raio de sol dourado de fim do dia

numa casa velha que de tanta luz

nos encandeia e engana a nossa visão. 


Sento-me frente ao último quadro que pintei

olho-o demoradamente

e é por ele dentro que me vou

a caminho do Outono dos outros.



 


 Foto do autor do texto




Ama

como os seixos amam o mar

o mar te leva,

o mar te traz.









 Foto do autor do texto


 

A falta de sentido


Há na minha fraca memória 

uma arrogância contra o passado

contra o fervor dos anos sem sono. 

No meu esquecimento das coisas

há um inevitável arrependimento 

     por atear fogos na serenidade

     por persistir em conduzir caravanas

     no deserto como Rimbaud

     por destruir os ninhos de aves ausentes

     por provocar clarões à entrada da noite. 


Há na minha fraca memória 

uma arrogância contra o passado. 

Como punição, vou dedicar-me

a descobrir o mistério nunca falado

das maçãs gémeas do paraíso 

até me dissolver na falta de sentido

de tudo isto.



 



 Foto do autor do texto



A tua compreensível insanidade


Compreendo a firmeza

da tua insanidade, 

compreendo que seja difícil 

suportar a realidade

para ti as coisas são outras coisas

e não tens dúvidas sobre isso. 

Compreendo que a língua 

em que falas agora

seja a tua própria língua 

que eu não compreendo. 

Em tudo o que dizes

há o queixume da injustiça 

e o terror do mundo inteiro

que te persegue. 

Compreendo que por muito

que chamemos pelo teu nome

jamais acordarás 

da tua firme insanidade

que compreendo. 

 

Cuida que não se fechem

as tuas pálpebras, 

terás direito a uma rosa eterna

só para ti.




 





Basta um olhar


Chamas pelo meu nome

e eu gosto

exibes para mim

a fantasia do teu corpo

e eu gosto. 

O arrebatamento com 

que desfruto da luz 

na abertura dos meus olhos

é o sino de uma igreja

em dia de festa. 

Ah ___ como pode a beleza

construir um homem!