A minha vida é diferente


Escrevo estas notas

sobre um tampo de mármore 

num lugar antigo

a tasca do Lopes

como o próprio Lopes diz. 


A minha vida é diferente. 


A mesa onde estou 

tem círculos de vinho aqui mesmo

ao pé da minha mão 

ficou um prato vazio de pão 

que uso como cinzeiro, 

aqui todos fumam, todos bebem. 


A minha vida é diferente. 


Dos que aqui vejo

alguns não têm casa outros 

têm casa mas não têm pessoas

eu só tenho estas pessoas

é com estes que coexisto é com estes 

que o pensamento me surge de repente. 


A minha vida é diferente. 


Fico aqui até à última 

tenho dificuldade em enfrentar

o medo

o escuro

o silêncio. 

Escrevo aqui até o Lopes limpar 

os resíduos do dia nas mesas 

as bocas que aqui ficaram

ele quer regressar ao seu silêncio. 


A minha vida é diferente 


Quando chego à minha penumbra

mato o silêncio com Salve Regina

o que me aumenta a tristura

a volúpia da decadência. 

Então desfilo nu

pelos quatro cantos da casa

como se fosse o mundo pequeno

e esperasse encontrar

alguém. 


A minha vida é diferente.




 









Quando os amantes, já mais velhos, se olham depois de se amarem, há uma certa condescendência no seu olhar.





 Foto do autor do texto



Esta vertigem de escrever 

para estar acompanhado


Sento-me sobre as ideias 

para que elas tenham palavras, 

desenho-as ao entrar no sono

onde volto a encontrá-las. 


Não conseguir fugir à miséria 

destas velhas águas sujas 

do feroz e cansado tempo 

até acordar para um ciclo 

de poesia venial, 

dores no corpo, 

medo dos arrependimentos

é uma penitência merecida. 


As vozes, os murmúrios que se foram

que persisto em recordar

e harmonizar com as caras ___

___ arruinadas, 

ausentes para sempre

é uma penitência merecida, 

escolhida entre o que é isto 

ou o que foi aquilo 

o que afinal vai dar ao mesmo

dizer sombra ou escuridão. 


Ou isso ___ ou nada.





 Foto do autor do texto



Colecciona o teu passado mais antigo


Colecciona antiguidades 

enquanto tiveres passado

     os megalitos da tua memória não os abandones 

     os olhares amantes de outrora cheios de palavras guarda-os 

     os abraços antigos por todo o corpo conserva-os 

     a antiga e estranha forma de amar como um suplício congela-a.  

Colecciona antiguidades 

enquanto tiveres passado 

para que possas recordar 

o tempo em que eras criança 

e te sentavas espalmado entre a mesa e a cadeira 

e isso era incompreensível para os adultos 

por terem fraca memória. 

 

Colecciona o teu passado mais antigo.



 


 Foto do autor do texto



Poema ao entardecer


Não permitas que a tua voz

corte o diálogo entre

o rumor da terra e o canto das aves. 


Cultiva o silêncio 

senta as tuas ideias

à sombra da folhagem. 


Faz render o tempo que te falta

com consciência disso

terás a sensação de que

esse tempo não vai acabar

porque veio contigo

de várias moradas. 


Embora estejamos todos

a despedirmo-nos uns dos outros.





 Foto de Bartolomeu Rodrigues



Se puderes voltar aqui


Se tudo for o inverso do que eu penso

talvez possas voltar um dia

e muito encontrarás do que sempre foi. 

Pede então que te digam como foi antes de tudo

e faz da tua inquietude uma teoria

     A vida e as suas inquirições não têm explicação 

     e os seus sinais só os entenderemos

     tarde de mais _____ tarde de mais. 

Depois 

vai buscar à fantasia a essência dos dias

e não te importes com o por quê 

basta que saibas como foi e quem foi. 


O resto são cores cansadas.