As fotos do delírio 


Folheio a propaganda de mais um supermercado

uma revista mole em papel quase brilhante. 

Deixo cair os olhos magros 

sobre um naco de bacalhau

de vários andares montado 

a escorrer pingos de azeite

do que brilha como o sol. 


Corro salivando à fonte

de luz e prazer para o ver

ao vivo e perto o mais possível. 

Já o povo que o consome

arrastava os seus carrinhos

e bloqueava o palco

salgado e mal cheiroso

onde o famoso actuava. 

Senhas para aqui, empurrão para acolá 

números vermelhos a cair na parede

esperei ___ salivei

esperei ___ salivei

esperei ___ salivei

esperei ___ salivei

esperei ___ salivei

esperei

e já distraído acordei

com uma mancha azul à frente

da bata com um homem dentro

tirando-me as ilusões :

          Queres bacalhau? Já não há! 

          Depenado como estás 

          só podes comer "paloco"! 


Com a resposta em verso solto regresso ao confinamento

se não trago a promoção volto às fotos do delírio. 




 


 Foto do autor do texto




Como saldar a dívida? 


Diz-me quanto te devo

passados todos estes anos ___

___ em troca destes cabelos brancos, 

do tricô que eu fazia com os dedos

quando me enervavas

com as tuas palavras movediças, 

das dores indefinidas pela tua falta 

de dedicação ao meu corpo, 

da cessação do desejo, 

da baba quando adormecia no sofá, 

dos símbolos derrubados

pelos espasmos da tua inteligência. 


Como já não tenho tempo 

para saldar a minha dívida ___

___ fiz as malas 

com os meus desgostos e os meus remorsos

e vou partir para aquele espaço vazio ___

___ mas voltarei

nú e com uma rosa entre os dentes. 






 Foto do autor do texto



Naquele tempo foi assim


A maldição é a distância do tempo

do teu tempo

e do meu tempo. 

A maldição é o tempo a passar

e onde o nosso tempo era igual

passou a haver uma eternidade. 

A maldição é a verdade

sempre vir colada ao tempo

e não termos tido a coragem

de não parar os nossos relógios 

e ir às nossas próprias vidas. 

A maldição é o nosso lugar no tempo 

por isso amaldiçoo o teu tempo

amaldiçoo o meu tempo. 

Quando a minha memória 

ficar cega e muda

já nem me lembrarei da tua cara,

nem te poderei recordar

pela impossibilidade 

de te extrair daquele tempo

onde não voltaremos a encontrar-nos.










A sombra das pedras


As pedras não tinham caído todas

as mais pesadas estavam reservadas para o fim. 

O que é que se constrói com tantas pedras? 

Agudas, 

esquinadas, 

sem brilho

com uma face de cada tom mas ___ sem cor. 

Não servem para o trabalho de rigor e bom gosto

que se exige para os jogos de glória. 

Preciso é sossego, 

brisas por entre os ramos

de oliveiras velhas mas férteis, 

lentamente separar as pedras

e entre cada pedra colocar uma pausa

e entre cada pausa colocar a palavra

                                                           SOMBRA

depois

erguer um arco antes que a noite chegue.









O que sinto agora

é a tristeza de quando era criança


Quando a brincadeira chegava ao fim

ficava um silêncio cavo de último dia

como se estivesse a abandonar

uma felicidade irrepetível. 


O parque infantil ficando para trás, 

o brinquedo que se partiu irremediavelmente, 

o gelado que chegou ao fim do copo colorido

ou ter de dormir na noite de Natal

e ouvir ao longe as vozes dos adultos

que ainda estavam acordados. 


O que sinto agora

é um silêncio cavo de último dia

como se estivesse a abandonar

uma felicidade irrepetível. 

A vida a ficar para trás.








A cismar


Cismo com os painéis solares

do prédio que me fica em frente

estão a roubar-me o sol e o resto da energia. 

Faço rezas e bruxedos até a sombra chegar. 

Vou-vos dizer como faço

          Raspo sete raspadinhas

          Sete golos de aguardente

          Sete rezas à santinha

          Sete desejos carnais

          Sete piscadelas de olho

Repito muitas e muitas vezes dia sim e dia não 

até ao pôr do sol quando entra p'lo meu quarto. 

Ao sétimo dia verei que me fecham a janela

não vá o sol perceber o poder do meu enigma.

E lá vem o comprimido para adormecer mais cedo.







Não há ninguém 


Não há ninguém como tu. 

     Naquela noite em que te identifiquei

     brilhante e sanguínea na tua dança 

     soube que não havia ninguém como tu. 

     Desde que dançaste para mim

     decidiste o meu futuro e

     quando estava contigo 

     já nem a chuva me deprimia

     nem temia o som escuro da memória. 

Não há ninguém como tu. 

     Chegava a adivinhar os teus sentidos ___

     ___ com rigor

     pelo suor do teu corpo

     depois de sapateares a vida no tablao

     Sou testemunha do teu vestido vermelho

     agitado volteando quando o voo nascia

     nas cordas duma viola. 

Não há ninguém como tu 

     mas ___

     ___ as horas envelheceram

     o teu sapateado não é mais do que o eco

     do teu regresso impossível. 

     Os teus sapatos vermelhos que ficaram

     são as minhas testemunhas

     de que os meus versos

     passaram a ser grotescos. 

     Não tenho posição para ficar nesta pausa. 

     O sabor que me ficou na boca

recorda-me que já não há ninguém ___ 

___ nem tu.






A tua boca cada vez mais pequena


Ainda há pouco ali estavas ___

___ ausente

sentada àquela mesa com memória. 

Estavas na minha frente

mas só me deixavas ver

o teu reverso. 





A vida desfaz-se na ausência de luz

tudo se transforma em sentidos ___

___ impossiveis

e as horas ___ são meses ___ são anos. 

Levaste o teu corpo de costas

mas eu vi a tua boca

cada vez mais pequena. 




Esta noite será igual às outras

estarei em silêncio ___

___ para sentir no corpo

o som de uma harmónica 

num lamento. 

O tempo se encarregará de nos livrar

do que é inconveniente

e de nós próprios. 




 







Esta é a sociedade do conflito


A cada palavra discordante uma mão se levanta. 

As verdades comprovam como as mentiras 

se transformam em verdades consumidas 

e são fêmeas reprodutoras que deixam

os seus filhos nos braços dos desatentos. 

Há homens que são palácios de arrogância, 

de desperdício, de febre contagiosa

é desses a ceia onde consomem o prazer. 


Os revoltados do chão terão o seu momento

de desembarque no cais sem nome, 

entrarão pelas portas dos fundos 

e libertarão os sonhos aprisionados. 

A mesa estará posta para todos. 










 A poesia

Mas para quem importa

a poesia

a não ser para o

poeta? 

Publicar poemas

sem destino

é como estender 

a mão à esmola

e recolhê-la vazia ___

___ e fria. 

Se o poeta tiver

uma casa à sua espera

não anda por aí 

na semeadura

a largar palavras

com as quais

nem tem confiança 

nem trata por tu. 

Poeta

já estamos no purgatório. 

E p'ra confirmar o que disse

vou já fazer um poema

pró Festival da Canção. 







Na Nazaré a minha mãe vestida de preto chora na praia


Nem todos têm uma mãe vestida de preto a chorar na praia. 

A minha mãe vestida de preto porque o meu pai

voltou sete dias depois numa dança estranha com as ondas

vestido de algas e muito maior do que quando partiu. 

A minha mãe a chorar na praia porque o meu irmão 

não voltou ainda ao sétimo dia e há cheiro a mar e a lágrimas. 

As outras mulheres vestidas de preto que também choram

dizem que ele fugiu com uma sereia, como os outros. 

Na praia até os peixes espalmados choram e secam a chorar. 

Percebi que a certeza da morte vinha do mar aos pedacinhos

e naquele deserto frio ninguém casava com sereias

porque já eram prisioneiros de redes que ninguém via. 

Nem todos têm uma mãe vestida de preto a chorar na praia

há infâncias diferentes por isso nunca irei para o mar

recuso-me a casar com uma sereia ou a dançar com as ondas. 

Tenho o resto do barco azul do meu irmão sobre a porta 

do meu quarto para me lembrar do cheiro a mar e a lágrimas.