Saudemo-nos


É urgente que digamos 

olá 

uns aos outros, pelo menos

olá

são centenas a espreitarem 

a limpar-me os olhos 

a manterem-mos abertos 

para ouvirem 

olá 

como se umas unhas

roçando a pele 

das nossas costas 

de alto a baixo

olá 

a qualquer hora 

é urgente que digamos 

olá 

uns aos outros 

porque é preciso que digamos 

alguma coisa como 

se estivéssemos atentos 

ao holocausto tecnológico 

digamos 

olá 

uns aos outros 

aqui mesmo 

como se déssemos uma flor 

uns aos outros 

olá 

para que o silêncio e a escuridão 

deixem de ser eternos

deixo aqui muitas palavras 

olá 

sirvam-se. 


olá olá olá olá olá olá olá olá olá 

olá olá olá olá olá olá olá olá olá 

olá olá olá olá olá olá olá olá olá 

olá olá olá olá olá olá olá olá olá 

olá olá olá olá olá olá olá olá olá 

olá olá olá olá olá olá olá olá olá 

olá olá olá olá olá olá olá olá olá







Dissemos


Milão 

La Scala 

as cadeiras em veludo 

vermelho 

um afago 

com as duas mãos 

para não esquecer. 

Quatro Estações 

cantar saltitando 

a dança de uma brisa

a doçura de um afago 

o repouso 

a dolência 

o som cavo 

um turbilhão 

o diálogo amigável. 

Foi dito 

o que estava por dizer. 




 

 Correntes d'Escritas

Agora

https://youtu.be/5ML9I4Vg1SM







Sorte


Sorte é 

estender a mão e ter 

alguma coisa à minha espera 

um garfo 

uma caneta 

um livro 

um seio.

Sorte é 

escolher um crepúsculo 

cheio de sons da natureza em festa 

e tirar a trela às ideias 

que levo a passear. 

Sorte é 

poder ficar sentado a detestar a vida

e depois

ir-me embora aos saltos

como um gafanhoto.





 Foto do autor do texto



Como dantes 


Se as coisas ainda fossem como eram dantes 

eu ainda dormiria do teu lado direito sossegado. 

Se as coisas ainda fossem como eram dantes 

as luzes da nossa casa ainda se apagariam todas ao mesmo tempo.

Se as coisas ainda fossem como eram dantes

ainda lá estaria aquele caminho incerto mas luminoso. 

Se as coisas ainda fossem como eram dantes 

já teríamos acabado com este silêncio nas nossas vidas sozinhos.

Se as coisas ainda fossem como eram dantes 

poderíamos estar nus agora à espera das ondas calorosas. 

As coisas já não são como eram dantes

seguro um soluço sobre este transtorno no corpo 

e peço-te para te sentares à minha cabeceira 

e ler em voz alta uma história paciente ___

___ sem pânico.







Amor não é uma palavra


Tu falas do amor 

como se fosse inevitável 

e bastasse pronunciar a palavra 

com um sorriso no intervalo da falta de sorrisos. 

Tu falas do amor 

ignorando as leis da inocência 

o único tempo em que tudo é possível

os cânticos belos mesmo que desafinados 

as fábulas que acreditamos que algum dia existiram. 


O amor é apanhar seixos na praia 

andar à chuva de mãos dadas e a rir 

passar o dia a comer hambúrgueres e pizzas

ficar ao telefone uma hora sem falar. 


O amor fora do tempo é 

uma cerveja sem gás

uma luz fraca no tecto 

uma televisão a preto e branco 

um beijo entre duas bocas sem dentes. 

A pronúncia da palavra 

não faz de nós amantes

somos apenas dois imaginários no deserto. 


Ainda assim 

está incandescente a flor do teu umbigo. 




 





Que farei agora? 


Despi-me das futilidades 

e trago um sorriso sempre comigo 

para disfarçar a dor 

até chegar o Outono. 

Depois é o castanho dourado

amarelo

laranja 

depois o Inverno

a dor

o sorriso

e acompanhar Walser no seu passeio 

excepto no dia em que faltei 

por ser Natal

e ele morreu. 

Agora 

o que farei com a minha loucura?





 Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Talvez amantes


Aguentaram o massacre até ao fim 

os gritos 

os gestos 

as palavras pedra

crianças a chorar de noite

sobretudo de noite. 

Aguentaram o massacre até ao fim 

resilientes 

insistentes 

talvez amantes. 

Morreram 

um em resposta ao outro 

como sempre.





 Foto do autor do texto



O desejo 


O desejo adiado 

é um corte profundo no lábio 

uma dor no peito, assustadora 

a ameaça de lágrimas a ferver. 

O desejo adiado 

é o desprezo da moral e dos sentimentos 

porque a lei é o instinto. 

O desejo adiado 

é sonhar espraiar-me no teu corpo 

e dar à costa na tua boca. 

O desejo adiado 

é pensar por cima do que tu pensas 

e ficar à espera que batas à minha porta.





Foto de Ana Luís Rodrigues



A despedida


Conheço-te desde pequena 

árvore misteriosa

vi-te crescer e erguer os braços. 

Ficámos tão íntimos 

que gravei no teu tronco 

estas palavras inocentes

que ainda aqui estão. 

Acompanhei-te e cresci contigo 

até dares frutos e aí 

o encanto do teu mistério. 

Cada fruto que me oferecias

ia colhê-lo ao engano

uma reluzente e colorida maçã 

ao primeiro encontro com a minha boca

logo me arrepiavas com o ácido

de uma laranja colérica. 

Sabias como adoçar a minha memória. 

Até hoje. 


Eu

teu dedicado protector e companheiro

desde quando ainda não éramos

mais do que flores a prometer frutos

de nada me esqueço e volto. 

Agora

tão velho como tu

retorno à casa onde nascemos, 

aqui já todos abandonaram tudo. 

Venho para te olhar uma última vez 

e simbolicamente te regar

com as minhas lágrimas 

dizendo baixo uma oração 

          "não morras sem mim". 

Não me importo que alguém me veja 

abraçado a uma árvore. 

Cada amor cada mistério.








Simplificando


A simplificação da vida a que cheguei 

permite-me não precisar 

de mais do que dois pares de calças. 

A simplificação da vida a que cheguei 

permite-me compreender 

que somos seres tão complexos 

que ainda é uma sorte estarmos vivos. 

A simplificação da vida a que cheguei 

permite-me aceitar 

que de tão avançada que vai a vida 

olho para as minhas coisas

como se já não fossem minhas. 

A simplificação da vida a que cheguei 

permite-me acreditar 

que há um sol a cada esquina 

e que podemos cantar em vez de gritar. 

Mas, 

nesta quietude 

também se morre do coração. 

Resta-nos o encantamento 

de assomarmos à janela e ver 

que há sexos de mulher voando como borboletas.





 Foto do autor do texto



Os livros encadernados 


Gostas de sentir o cartão

da capa na tua mão 

quando é em cartolina

fica a capa muito fina. 

Uma capa de cartão 

tem outra apresentação. 

E as letras no interior? 

Já lá vamos por favor! 

Tenho outras coisas para ler 

os romances a valer 

milhares atrás de milhares. 

Se forem em cartolina 

manda-os pois encadernar 

a estante fica composta

é assim que a gente gosta. 

Tenho várias colecções 

das do Círculo de Leitores 

comprava o que eles queriam

encadernados às cores. 

Tenho ali uma fortuna 

e muito pó para limpar 

não tenho tempo para ler 

vou-os deixando ficar. 

Vou buscar o que me consola 

e depois vou-me sentar 

já cá tenho a literatura

vou ler o jornal A Bola.