Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Uma ponte


É inevitável que te desnude

como a um fruto desejável 

tu me entenderás

mesmo nas palavras desencontradas

porque estamos ambos no interior da vida

tu te revelarás 

para tornar mais humana 

esta minha aflição de te descobrir

como se tirasse a capa

a um fruto apetecível 


depois 

estou certo que quererás sentir

a minha boca na vertigem das palavras 

e os nossos dedos

ajustados aos nossos dedos

cada um do seu lado

a encurtar a distância 

entre os nossos corpos 

como uma ponte 


Tomar-me-ás então 

dentro do teu mistério.




 


 Foto do autor do texto



Desminto


Desminto todos

os que disserem de mim que sou um caso perdido

uma vida sem sentido ___ incompleta


não é por trazer aves à volta da cabeça

não é por ter ruído a casa onde nasci

não é por guardar no bolso relógios vertiginosos

não é por desperdiçar as noites num sono inquieto 


por ter um piano calado

um jardim de flores silvestres ___

___ e ninguém me trazer uma flor

uma caixa com cartas velhas ___ sem resposta

e viver num país instalado numa cave


que podem dizer de mim

que sou uma vida perdida


     desminto todos!





 


 


 Foto do autor do texto 



Em silêncio ___ o abandono


Estou a abandonar-te ___ aos poucos

há um repouso grave ___ um silêncio 

nem uma ave

nem os passos do tempo

nem um clarão breve


contemplo os pincéis quietos ___

___ sem solução para a sua vocação 

e as tintas caladas na paleta ___

___ sem incómodo nas suas cores


digo que estou a abandonar-te

mas sei que sou eu

que estou a ser abandonado. 



 


 Foto do autor do texto



Apago os dias
 
Nunca me disseste se voltavas ou
de que nome seria o dia se voltasses
recomecei tudo sobre a dúvida 
concebi o meu próprio calendário 
onde dobrei os dias
os meses
os anos ___ longos
e cada hora ainda é um momento provisório 
porque nunca me disseste se voltavas
fiz traços numa ardósia 
uma pedra preta pendurada 
na pausa da tua presença 
mil vezes tracejei mil vezes apaguei
nunca soube de que nome seria o dia
se voltasses
fizeram-se velhas as maçãs 
que deixaste na fruteira
vigiadas pelos antepassados 
debruçados da parede sem cumplicidade
limpo o pó aos seus sorrisos
apago os dias da ardósia 
deito fora as maçãs 
e atiro pela janela a minha existência 
porque nunca disseste se voltavas.




 






Poemas da minha infância 




Cegonha


Hoje passeei com o meu pai

de mão dada

e vimos uma cegonha

no seu ninho à beira do caminho

era grande e gorda

acreditei que é a cegonha

que vai trazer as minhas irmãs gémeas

disse-lhe adeus

para ela me conhecer.





Foto de Tripadvisor





Foto do autor do texto tomada do documentário VIDA SELVAGEM 




Terrores nocturnos 

 

Tenho os meus terrores noturnos 

e diurnos também 

confesso 


os meus sonhos em ruínas 

e os meus dias também 

construções doentias

e desconstruções também 

confianças perdidas 

e autoconfianças também 


tenho os meus terrores


veleiros a naufragar

e cascos que dão à costa 

filhos que não voltam 

e outros que partem também 


tenho os meus terrores noturnos 

e diurnos também 

confesso 


O meu outro em mim senta-se 

e ouve ao longe

uma ária conhecida

esses são os intervalos na sua vida.


 


 


 Foto de fatsecret



Um queque e um poema


Desfolho um queque

pétala a pétala 

para o saborear


em tudo se parece

com o que faço 

com as palavras


uma a uma as saboreio

no seu significado

no seu harmonioso sabor


depois ___ aos poucos

a minha boca se contenta

com o queque e com as palavras 


estou nas margens do prazer

peço um café 

e acabo o poema.