Foto do autor do texto



O corpo e o espírito 


À força de viver

fui-me esquecendo da vida

o corpo era apenas o lugar

onde o espírito era obrigado

a acordar e a adormecer 

numa sucessão triste

que não influenciava o corpo


pelo caminho assassinei

muitos espíritos

e fui assassinado por outros

numa carnificina espiritual

de que o corpo nunca deu sinais


agora ___ estou 

na prisão perpétua do tempo

o corpo e o espírito prisioneiros

mas ainda assim

ando

corro

salto

como

bebo

durmo

amo com o corpo

sem que o corpo dê sinais

da sua clausura 

e

sonho

leio

escrevo

ouço 

canto

ólho

amo com o espírito 

e o espírito aceita

a prisão do corpo 


e à força de viver

estou a lembrar-me da vida.




Foto do autor do texto



O meu jardim e o mundo


Voltou o sol

que a chuva tinha apagado

abriram-se os Chorões no meu jardim

perderam o medo da sombra

a situação no mundo não se altera

por haver sol ou Chorões 

abertos no meu jardim

os combatentes não ressuscitaram

ou não voltaram às suas casas

não ferveu sopa nas malgas

dos desalojados ou dos sem terra

saltam sombras de telhado em telhado

secam palmeiras contaminadas

morrem peixes aos milhares

suicidando-se nas praias 


há sol

e os Chorões abriram-se

perderam o medo da sombra

só os dois Girassois cegos

que tenho no meu jardim

continuam felizes apesar de tudo.



 

Foto de Daniel Filipe Rodrigues


Nesse tempo


Eu já fui imortal

nesse tempo 

ninguém punha em causa a eternidade

tudo era possível

desde que música e sorrisos fossem braços 

imaginários pelos ombros dos outros

nesse tempo 

não existiam ainda as palavras

nostalgia

desespero

miséria 

ou por outra

nós ainda não tínhamos ouvido essas palavras

tão ocupados tínhamos os ouvidos

com os cânticos da moda

nesse tempo 

pendurei pelas paredes do meu quarto

papéis com o teu nome e tinha a certeza

de que seria o único o primeiro e o último 

a minha mãe perante cada novo nome

deixava cair aos pés da porta do meu quarto

um suspiro meio sorriso 

como se eu estivesse enganado

coitada da minha mãe não tinha noção do seu erro

ou então nunca tinha amado com carácter definitivo

nesse tempo 

os que tinham o dobro da minha idade

eram os velhos que deixaram de acreditar

e que o diziam como se eu ou a minha vida

viesse a ser como a deles

nesse tempo

ninguém morria ou então era eu que achava

que não morria e que os outros não existiam

para morrer a não ser os que vinham nos jornais 

nesse tempo

eu não sabia que havia outro tempo em que

continuo a ser imortal embora cheio de dúvidas 

porque os outros afinal não são imortais e 

os nomes que espalhei pelas paredes do meu quarto 

pintei-lhes por cima várias cores


um dia alguém disse que os poetas são imortais

eu que já tinha escrito mais de mil poemas

ouvi uma voz a cantar

     e troco a minha vida por um dia de ilusão.*


*Maria Guinot 



 

Foto do autor do texto



Cicatrizes


Vá ___ que o mundo novo

seja em breve

já tenho o corpo cheio de cicatrizes

quando me vestirem confirmem

a brutalidade da luta

pelo mundo novo adiado


pacientemente adiado

entre a raiva e o desígnio 

convoco então 

o prazer dos sentidos

para ter o entendimento 

do efémero 

e na agonia canto vitorioso

as cicatrizes do meu corpo.



 

Foto de Ana Luís Rodrigues



Com música 


A dor dos homens

está contida 

sob um pisa-papéis 

com que nos prendem


põem a tocar

a música que nos agrada

e dançam 

à nossa vista


ninguém ouve o grito

e chove em dilúvio 

sobre a nossa liberdade 

embora com música 


todos temos nomes

mas invocam-nos por números

sabemos tudo sobre

tristeza angústia frustração fome


embora com música 

ah

falta a violência 

embora com música.





Foto do autor do texto


As lágrimas 


À noite 

folheio os lençóis da minha cama

como se procurasse uma história perdida

naquele rectângulo de luar

já é verão deito-me descoberto

e sobre a tua almofada

vejo as lágrimas escuras L’Oréal

que deixaste

amanhã compreenderei que há razão 

para que a morte se lembre

dos nossos melhores 

ela recolhe os poetas

alimenta-os

e torna-os imortais


esta é a história perdida na minha cama

de umas lágrimas escuras L’Oréal

e do poema que chegou tarde ___

___ no cinzeiro ficou a tua boca.