Vídeo do autor do texto



Não nos salvamos


Como estamos longe ___

___ já não recordo o contorno

dos teus lábios nem do teu nome

no entanto ainda me soam

as palavras 

as malditas palavras sobre o choro

indistinto de quem chorava 


não foi suficiente

o entrançado de perdões 

as coroas floridas nas promessas 

porque as palavras 

as malditas palavras 

que escondem o contorno

dos teus lábios 

e do teu nome

desfolham 

todos os nossos malmequeres 

a torto e a direito


como estamos longe ___

___ como as nossas mãos dadas

são apenas 

uma salvação provisória

ficámos ambos sem a lua.



 


 Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Espero o meu próprio regresso


O autor desnuda-se perante os seus leitores

e confessa-se pretendente a poeta que canta

     os angustiados sem abrigo para a angústia 

     os desencontrados de tudo

     os órfãos de uma vida inteira

     os confusos com os caminhos

     os entendidos como loucos

os que se esqueceram da sua existência

     os arrependidos de terem estragado tudo

     os saudosos

     os solitários 

     os impotentes

     os abandonados


o autor observa na margem do rio

que passa junto à sua casa

uma barca velha abandonada

onde já se viu a ser levado desnudado

por ser o poeta dos que partiram

o autor fica à espera do seu próprio regresso.

 

 




Pela Palestina 


Não se pode construir uma casa 

numa boca aberta


tenho coração a mais

sobram-me os olhos

o coração que está a mais 

não pára de bater ___ a mais 

pelos que pararam de bater

e os olhos avaliam ___ de mais 

a distância entre o direito 

e o equívoco

 

Aos olhos não os quero fechados 

mas a ti coração condeno-te 

a ires para a prisão 

sem passares pela casa da partida.



 

Foto do autor do texto



O passado a sangrar


Enterro a minha espada

no coração do passado

preciso do sangue quente 

das palavras 

nas minhas mãos 

na minha boca.



 

Foto de Ana Luís Rodrigues



 

Poesia nasce neste momento 


Os poemas não nascem a toda a hora

nem sequer nascem todos os dias

_ este é o momento eu sou o poema _

por isso nesta aflição escrevo para ti 

um poema em cima do joelho

põe-me na tua boca quando o receberes.



 


 Foto do autor do texto



O que importa


Pouco importa 

que tenham outra cor os teus cabelos 

se os teus olhos continuam a brilhar


pouco importa 

que o teu corpo seja um cântico mais longevo

se tu te dás ainda mais mulher


pouco importa 

que a tua voz tenha uma tonalidade mais adulta 

se agora me traz a ondulação de um mar calmo


quero morrer

amando com o corpo para afrontar a natureza 

o que importa 

é a flor que deixarei entre os teus seios.





Foto do autor do texto



Indignação ___ dizes tu


Se sabes o que é indignação

então tu me dirás que a indignação

é viver na abastança 

sem dar conta disso

é ter um roupão de seda

e vários cachimbos

é comer apenas em restaurantes 

com toalhas de pano

é ter filhos em colégios religiosos

e ir à missa domingo sim domingo não 

é ter duas ou mais amantes

e trocar-lhes os nomes


Indignação é ___ perante isto

não ter um nó na boca 

e perder a voz para sempre 

como castigo do Altíssimo.



 



 

Confissão de um artista


Porque me iluminas 

serei teu amante

ainda que me faltem as forças para te amar

serei teu amante ainda que

tenha esquecido o teu e o meu nome 

serei teu amante ainda que

já não consiga pintar o teu retrato

serei teu amante ainda que

nunca mais te possa ler poesia em voz alta

serei teu amante ainda que

me mandes parar de cantar

serei teu amante ainda que

me prives da liberdade de te amar

vieste em luz 

na orla da noite e aprendi

que o amor é tempo de provação 

sob o anseio de felicidade.


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 Carlos Avilez

1939 - 2023

   
Foto Companhia de Teatro de Almada