Foto de Bartolomeu Rodrigues





 
Rumo ao futuro


Estou de partida

eis-me com um pé no futuro

não por desejo de aventura

mas por ser inevitável. 

Levo comigo o passado

e pelo sim pelo não levo poemas 

talvez no futuro

desconheçam a poesia.



 


 Foto de Augusto Rodrigues





O regresso do trabalho

Passeiam o sono nas encostas 
de um banco de jardim com persistência 
há um sonho sob as suas boinas 
um sonho que envelheceu 
nas suas mãos forradas dos calos do trabalho 


um dia deram conta de que ainda 
eram meninos com afã de homens 
que a vida não parava para reinação de criança 
ainda guardam os anos perdidos 
dentro da velha marmita de todos os dias 


há uma noite  densa em cada sono fora do lugar 
de preferência ao sol para recordar 
o que é o corpo suado do trabalho 
e despertar é como afirmar em público que a hora 
de dormir para sempre ainda não chegou 


no regresso a casa hoje é dia 
de iluminar os olhos com a luz 
guardada na caixa das velhas fotografias da vida 
com a cara encostada à saudade que com ele respira.


 


 Foto de Daniel Filipe Rodrigues





 
 
Aquela casa


A casa amarela

a maravilhosa casa amarela

ou dourada ___ talvez


ainda me lembro das trombetas

e dos fogos coloridos e tu a acenares

a minha única visão 

nos limites da minha compreensão 


e a casa amarela

ainda no seu lugar de sempre

envelhecida mas na sua cor original 

como um sol de Setembro

a cair ao fim do dia


e o tempo a dar-lhe ___ forte ___

como se o amarelo pudesse ser

ignorado ___ mesmo pelo tempo


deixei os meus livros e os meus papéis 

na fúria da fuga ___ insensata fuga

tenho a chave da casa amarela

mas já não há porta

ainda assim vou guardá-la.









 Foto do autor do texto




À maneira de Proust


Deixa que me aposse desta tua janela

como se fosse um lugar meu

e desse sol como se fosse um sol comum

e das árvores em frente com reflexos

de ouro e rosa a fazerem convergir

o nosso olhar ainda tímido


antes que desça a noite de Outono

já fria ___ e tenhamos o privilégio 

do nosso lugar aquecido

e sobre a mesa aquele bolo

pedaço doce com nome de pecadora

que num tom dourado nos convida


fiquemos agora imóveis na penumbra 

iluminada pela cor licorosa da luz

dos nossos candeeiros já ensonados

falemos o inadiável ___ apenas

e troquemos os nossos suspiros

antes de adormecermos.





 Foto do autor do texto







Mensagem ao meu corpo


Corpo,

o inocente e irresponsável corpo

que nos segue e mora onde moramos nós 

sempre vestido de nu 

sempre com urgência de nascer

Corpo, 

são teus os dedos da nossa comum memória 

puídos de tão usados a contar

as páginas descoloridas da nossa mente

Corpo,

os malefícios que provocas na minha razão 

porque tu é que morres e não deixas

que eu exista depois de ti

Corpo, 

tu sabes como levar a minha mente ao êxtase 

sabes que quero adormecer abraçado a ti

que escrevo para ti um poema

que vou gravar no interior da pele do meu peito

Corpo, 

acompanho-te ___ vou cuidar de ti

até à desmemória


Vamos corpo

convida-me para passearmos à chuva.



 


 Foto do autor do texto





  
 
As nossas mãos

Um prazer tranquilo 
deixar escorrer os meus dedos
pelos teus ombros
devagar


nada mais repousante

que parar os meus olhos 

no teu peito descoberto

que descobri


nada mais sereno

do que a respiração tranquila

no teu ventre

luzindo


e no lugar onde se nasce

o celeiro que me alimenta

a imaginação ___ a vertigem

acomodo-me


e diz lá agora

o que há de mais imediato do que

as nossas mãos a autorizarem

os olhares

as palavras

os beijos.