Rumo ao futuro
Estou de partida
eis-me com um pé no futuro
não por desejo de aventura
mas por ser inevitável.
Levo comigo o passado
e pelo sim pelo não levo poemas
talvez no futuro
desconheçam a poesia.
O regresso do trabalho
Passeiam o sono nas encostas
de um banco de jardim com persistência
há um sonho sob as suas boinas
um sonho que envelheceu
nas suas mãos forradas dos calos do trabalho
um dia deram conta de que ainda
eram meninos com afã de homens
que a vida não parava para reinação de criança
ainda guardam os anos perdidos
dentro da velha marmita de todos os dias
há uma noite densa em cada sono fora do lugar
de preferência ao sol para recordar
o que é o corpo suado do trabalho
e despertar é como afirmar em público que a hora
de dormir para sempre ainda não chegou
no regresso a casa hoje é dia
de iluminar os olhos com a luz
guardada na caixa das velhas fotografias da vida
com a cara encostada à saudade que com ele respira.
Aquela casa
A casa amarela
a maravilhosa casa amarela
ou dourada ___ talvez
ainda me lembro das trombetas
e dos fogos coloridos e tu a acenares
a minha única visão
nos limites da minha compreensão
e a casa amarela
ainda no seu lugar de sempre
envelhecida mas na sua cor original
como um sol de Setembro
a cair ao fim do dia
e o tempo a dar-lhe ___ forte ___
como se o amarelo pudesse ser
ignorado ___ mesmo pelo tempo
deixei os meus livros e os meus papéis
na fúria da fuga ___ insensata fuga
tenho a chave da casa amarela
mas já não há porta
ainda assim vou guardá-la.
À maneira de Proust
Deixa que me aposse desta tua janela
como se fosse um lugar meu
e desse sol como se fosse um sol comum
e das árvores em frente com reflexos
de ouro e rosa a fazerem convergir
o nosso olhar ainda tímido
antes que desça a noite de Outono
já fria ___ e tenhamos o privilégio
do nosso lugar aquecido
e sobre a mesa aquele bolo
pedaço doce com nome de pecadora
que num tom dourado nos convida
fiquemos agora imóveis na penumbra
iluminada pela cor licorosa da luz
dos nossos candeeiros já ensonados
falemos o inadiável ___ apenas
e troquemos os nossos suspiros
antes de adormecermos.
Mensagem ao meu corpo
Corpo,
o inocente e irresponsável corpo
que nos segue e mora onde moramos nós
sempre vestido de nu
sempre com urgência de nascer
Corpo,
são teus os dedos da nossa comum memória
puídos de tão usados a contar
as páginas descoloridas da nossa mente
Corpo,
os malefícios que provocas na minha razão
porque tu é que morres e não deixas
que eu exista depois de ti
Corpo,
tu sabes como levar a minha mente ao êxtase
sabes que quero adormecer abraçado a ti
que escrevo para ti um poema
que vou gravar no interior da pele do meu peito
Corpo,
acompanho-te ___ vou cuidar de ti
até à desmemória
Vamos corpo
convida-me para passearmos à chuva.
As nossas mãos
Um prazer tranquilo
deixar escorrer os meus dedos
pelos teus ombros
devagar
nada mais repousante
que parar os meus olhos
no teu peito descoberto
que descobri
nada mais sereno
do que a respiração tranquila
no teu ventre
luzindo
e no lugar onde se nasce
o celeiro que me alimenta
a imaginação ___ a vertigem
acomodo-me
e diz lá agora
o que há de mais imediato do que
as nossas mãos a autorizarem
os olhares
as palavras
os beijos.