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As minhas dúvidas 


Levei a vida toda 

a pôr dúvida sobre dúvida. 


Tenho dois Cristos no meu quarto

um é magro nasceu de um galho 

outro em barro branco 

de curtos braços e longas pernas. 

Um deles disse-me

passaste muito tempo a morrer 

esqueceste-te de viver,

olha para mim 

morto apenas por 2 dias 

ao terceiro já vivia. 


O outro disse-me

sentes-te frustrado e incompleto 

olha para mim 

sou um terço de um deus 

e sou um homem como tu. 


Depois disto 

senti-me em estado de graça

e fui caminhando para Santiago.








A terra que vai secar


O olhar dos poetas 

será um sulco na terra que vai secar 

por onde fluirá a esperança que os vindouros 

as crianças filhas destas crianças 

lançarão ao nosso chão desesperado. 

Maldigo a brutalidade de acordar ___ agora 

sem conseguir falar 

e a minha respiração 

são urros 

sem maldade 

sem revolta. 

Porque será que quando ouço dizer merenda 

logo penso em pão com marmelada? 




 




Escutar o silêncio 


Quando anoitece 

que medo tenho dos aromas do teu corpo.

Vejo que os teus lábios tremem numa reza 

ou num insulto calado. 


Obedeço ao apelo da tua pele ___ da tua pele

e então engendro um poema em voz alta

com as palavras que conheces 

mas não me deixas usar. 


Depois fico 4 minutos e 33 segundos 

a escutar o silêncio ______ da tua pele

antes de enfrentar o medo. 





 


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Executem-me


Ambiciono que os meus dedos 

assassinem quase toda a minha memória 

que rasurem as linhas dos remorsos 

no anseio de que nada reste 

para que haja mais bocas silenciosas 

do que corações a bater. 

No futuro ninguém contará as minhas histórias. 


Podem fazer o favor de me executar

ou tenho que agrafar o desassossego do amor

num qualquer quarto de aluguer?








Este texto, sem data, foi encontrado no diário do meu avô que morreu com 92 anos. Foi casado com a minha avó que era espanhola.


(Para dizer à maneira de Almada Negreiros quando disse  O Manifesto anti-Dantas)





Eu não sou português


EU TENHO VERGONHA DE SER PORTUGUÊS!

EU NÃO QUERO SER PORTUGUÊS!

EU NÃO SOU PORTUGUÊS!

Eu não gosto de vinho,

Eu não gosto de fado,

Eu não tenho clube de futebol,

Eu não gosto de touros,

Eu não tenho religião,

Eu não respeito quem nos governa

da mesma maneira

que não se respeita um pai que é ladrão, 

mentiroso, 

corrupto

e sei lá mais o quê!

EU JÁ NÃO GOSTO DE PORTUGAL!

EU NÃO SOU PORTUGUÊS!

EU SOU QUASE ESPANHOL!

Eu só não sou todo espanhol porque não falo espanhol!

EU QUERO SER TODO ESPANHOL!

Eu gosto da Espanha,

Eu gosto dos espanhóis,

sobretudo das espanholas

das espanholas que dançam flamenco!

EU NÃO SOU TODO ESPANHOL

PORQUE TAMBÉM SOU UM POUCO FRANCÊS!

E assim sucessivamente,

até sendo de todos não ser de nenhum!

EU SOU APÁTRIDA!

E embora nada disto seja real 

o que sei sobre este assunto é que

EU JÁ NÃO SOU PORTUGUÊS

E JÁ NÃO TENHO VERGONHA DE NÃO QUERER SER PORTUGUÊS!





Minas de S. Domingos - créditos: Who Trips



Hoje preciso de ti


Hoje preciso de Proust

não é remédio mas acalma. 


"Porque, quando é na esperança de uma preciosa descoberta 

que desejamos receber certas impressões de natureza ou de arte,

temos algum escrúpulo em deixar que a nossa alma receba em seu lugar

impressões menores que poderiam enganar-nos

acerca do valor exacto do belo." *


Há um túnel e ao fim um cão uivando

e a cintilação de uma navalha aberta. 

O som de um barco a partir

e a sirene aflita chamando. 


Hoje preciso de ti.







* Marcel Proust

Em busca do tempo perdido - volume ll








Aceito


A minha vantagem 

é que aceito da vida 

tudo o que ela me dá. 

Uma casa caiada 

um céu azul ou não 

água ___ muita água 

chuva, sol 

e eu dentro de tudo isto. 

E dentro de tudo isto 

alegrias, 

choros, 

suores, 

sustos, 

estremecimentos, 

desgostos, 

prazeres, 

sabores e perfumes e lágrimas. 

E aceito a noite 

como início do dia 

e no meio dos dias 

as árvores, as aves

o vento ___ o vento ___ a brisa 

e de novo a noite. 

Fecho a porta 

da minha casa caiada 

e fico no meio do mundo 

aceitando a vida. 




 


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Poema quase demente 


A luz é uma linha 

através do estore mal fechado 

é a manhã a dar sinal. 

A minha mão indecisa

tenta-se no abuso de te acordar. 

Estamos numa manhã já causticada 

em tempo de ruínas. 

Ainda assim a minha mão 

num abuso a querer acordar-te. 


A tua ausência também é uma presença. 

Fico a ouvir o meu gato

a afiar as unhas na minha solidão. 


Não digo que não é bela a tua cidade 

mas Paris … é o âmago do sonho ___

___ ou da demência. 






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Tomai a minha contribuição 


Quero libertar as palavras

do constrangimento e juntá-las

conforme me dita a imaginação. 

O poeta é um ser silente

um apanhador de canções por fazer

colhe uma palavra aqui uma flor acolá 

e come-as 

já que ninguém é dono de todas as palavras

nem de todas as rosas. 

Findo o poema, 

passa a ser vosso

tomai e bebei este é o meu mosto, 

tomai e comei este é o meu choro.





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Poemas com Pernas Pequenas


A sedução 

é uma maçã avisada

do poder que o fruto tem

numa boca abandonada.





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Dependência 


A aparente manhã descomunal 

o dia do encontro 

entre o mal e o desconhecido 

entre um olhar e uma mão estendida 

entre uma represa e água em degraus deslizando 

entre a memória e a identidade de hoje 

entre a ciência em esforço e a incúria dos homens 

entre um algoritmo ambíguo e um algoritmo executável. 

Em tudo a dependência de tudo. 

A minha dependência 

é de uma boa sopa cozinhada ao fim da tarde. 





 


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Prazeres


Há um prazer renovador

quando dobro a roupa acabada de lavar. 

Há um prazer ansioso

ao dobrar o folheto de um remédio.

Há um prazer fatigado

quando desdobro as ameias do teu pensamento. 

Há um prazer empenhado

quando tento dobrar as palavras dessa boca. 

Banais prazeres, 

ambíguos prazeres

ora aprazíveis 

ora descontentes. 








Que voz, que tempo? 


Que voz é essa que faz tempo

desce pelas montanhas 

e desassossega os nossos rebanhos? 

Nem os cães ladram

têm o maxilar no chão

e ganem à vista dos vultos. 

Fechem os currais, os celeiros 

e as portas das vossas casas. 

Duvidem desse chão de xisto 

e vigiem as sombras 

que circundam o vosso poço. 

O tempo está corrompido 

eu, por mim, dissolvo-me antes

que seja outro dia sem resposta.