Foto do autor do texto



Às leitoras e aos leitores


Uma carta


Sinto a luz do vosso olhar no exame das palavras

e isso me basta. 

Em cada letra é um respiro em cada palavra um sentido, um delírio,

sangue suficiente para o autor quando deseja pouco

e espera tão pouco. 

A poesia serve para mudar o matiz dos nossos pensamentos

ora dando-lhes cor, ora criando a noite num vocábulo, 

quando é necessário. 

A poesia é por isso a necessidade de dizer, mesmo que apenas 

com o movimento dos lábios acompanhando o labor da mão. 

A poesia procura um pulsar repentino naquele verso que encontrou

e que o autor quer partilhar. 

Quem escreve quer deixar um rasto de letras para que o sigam 

aqui estão letras que deixo no caminho. 

Estou neste lugar onde me recolho e deixo a porta encostada, 

à vossa espera, porque desse lado eu sei que é dia. 








Há palavras que definem


Quando damos os bons dias 

com um beijo sempre igual.

Quando partimos o pão 

no mesmo número de fatias.

Quando o que dizemos 

já não é o que pensamos. 

Quando já não há nudez que valha 

a satisfação dos sentidos. 

Quando já não estamos confortáveis

e somos apenas mártires sentados. 

Há palavras que definem a sucessão 

de momentos em que mais nada sucede. 

Tédio, 

enfado,

mesmice, 

apatia,

rotina, 

simetria. 


Monotonia.













 Foto do autor do texto



Uma amizade memorável 


Lá estavas ao fundo da rua

igual na cor e na luz

como da nossa primeira vez. 

A estranheza da tua presença de prata

fixou o meu olhar durante todo o tempo

pela Iparraguirre Kalea, arrebatado. 

A escultura metálica recortada

no fundo verde da natureza recebia-me

como se tivesse sido feita para mim. 

Continhas em ti todos os reflexos possíveis 

porque a tua relação com a luz é incondicional. 

Foi tanta a voragem do olhar

que tudo não foi mais do que um instante

e tão insatisfeito o desejo da descoberta

como sempre é pouco o curto abraço 

com o nosso amante que vai partir. 

Restam-me as imagens de como foste

para mim e serás depois de mim

não poderás negar que estive contigo

porque eu conservo os nossos retratos. 

Por muito bem que saiba onde estás 

dificilmente voltarei 

mas o meu coração continua a obedecer 

ao ardor do nosso encontro

e aprendi contigo a interiorizar o pôr-do-sol.





Foto do autor do texto 



Uma nostalgia começa 


Talvez te lembres, leitor

daquele copo de cerveja gelada que bebeste golo a golo

numa esplanada de Espanha num dia de muito calor

e como isso foi uma referência para sempre. 


Talvez te lembres, leitor

de entrares numa cidade com um castelo no alto

que já vias de longe parecendo-te irreal

e como isso te iluminou como um clarão só em ti. 


Talvez te lembres, leitor

dos primeiros acordes num concerto

em que tiveste que equilibrar as lágrimas

e como isso te tornou perfeito por momentos. 


Talvez te lembres, leitor

do livro onde encontraste em cada linha

as palavras que falavam por ti

e como isso te elevou. 


Nada do que ouviste dizer pode ser verdade

mas não tens voz que chegue

para competir com um silêncio tão sólido. 


Uma nostalgia começa. 




 


 Foto do autor do texto




Poemas com Pernas Pequenas


Do meu primeiro andar

tenho uma boa vista

por entre os outros prédios 

vejo o céu clarear

onde eu sei

que começa o mar.


..............



À hora de dormir

embalo-me olhando

para uma fotografia 

de quando eu era criança. 







O rumor daquela noite


Setenta natais depois 

percebia-se o rumor

da noite a aproximar-se. 

Quatro olhares azougados

tomaram o meu lugar

pequenas mãos descobriram

o mesmo que eu descobri. 

Setenta natais já velhos

num sonho sonhado à pressa

antes que fosse dia. 

Quatro olhares azougados

tomaram o meu lugar

sobre as palavras viúvas 

as mesmas que eu descobri. 

Setenta anos depois

tropeçando nas memórias 

ao querer beijá-los a todos

nem dei conta nestes versos

que o natal tinha acabado. 




 


Imagem de Galeria do Meteorito




Deixem

a

porta

encostada

eu 

vou 

voltar

 amanhã 





 Foto do autor



Eu recordo


Respiro devagar para não gastar a noite

a noite maravilhosa

em que o meu pai era o intérprete 

dos sons do menino Jesus a chegar

a chegar na hora certa. 

A meia-noite era uma chama ardendo numa estrela dourada.





 Foto do autor do texto



O nome das coisas


Andei perdido

fora do conforto das sopas quentes

é neste chão gasto que me encontro. 

O latido metálico dos cães 

saltando os muros dos quintais 

abafam os sons das casas iluminadas. 

Sons de louças dançando, 

uma criança a devorar o silêncio chorando, 

um anúncio da TV soando, 

uma mulher zangada gritando. 

Andei perdido 

fora do conforto das camas quentes

é neste chão gasto que me encontro.

O peso que as fábricas de fantasias 

fabricaram na minha vida 

deixaram-me neste chão gasto 

onde estou ___ rígido ___

___ sem mais palavras. 

O medo é a única palavra 

que dá nome às coisas.






 Foto de Bartolomeu Rodrigues



Um naufrágio 


Nada pode ser mais trágico 

do que acordar desamparado

no princípio da manhã. 

Nada provoca mais lágrimas 

do que o sol que irrompe

pela janela do último quarto. 

Nada é mais soturno

do que os sons da alvorada

junto com os silêncios

do chamamento do dia. 

Nada parece mais mortal

do que viver a última vez

o princípio do último dia. 

Nada pode ser já mais importante

do que a natureza a ficar velha

e o medo a tomar conta de tudo. 


Nada disto é mais 

do que um naufrágio 

na ausência de tempo. 




Foto do autor do texto



Discípulo de Kardec 


Invoco-te sem fumos sem escuridão 

na penumbra com música suave, grave, lenta

duas chamas altas a ondular 

a cor do lume a alegria, a ansiedade

com a tua fotografia na minha memória

a já não caber mais no meu pensamento sépia 

com as duas mãos húmidas sobre a mesa 

digo o teu nome igual a tantos nomes

digo o teu nome 

                           Pai 

e a boca do além na tua voz diz o meu nome

o nome que me deste na frescura diária do passado. 

Falaste com frases curtas de espuma, imperceptíveis. 

Nada mais se passou senão a contemplação

e o som do mistério a equilibrar-se nas lágrimas. 

Apenas compreendi esta palavra

                          espero-te! 





 


Foto do autor do texto



Maltrato os meus desejos


Aprendi a maltratar os meus desejos. 


O desejo é um peso sobre a mão 

que erguemos sem esforço 

o desejo é um calafrio atado à cintura 

a magoar-nos as ancas

o desejo são as pernas apoquentadas 

e à solta sem se afastarem

o desejo são verbos conjugados

com a boca sequiosa

o desejo é o sexo aos gritos 

pedindo para ser ouvido. 


Maltrato os meus desejos 

até me esquecer deles 

não fecho os olhos para que eles 

não se insinuem nas minhas visões 

nos meus sonhos 

na minha imaginação. 


Maltrato os meus desejos. 




 


 Foto de Bartolomeu Rodrigues




A solidão ninguém sabe


A solidão não existe

     há sempre uma voz retalhada

     que nos fala dos nossos vícios 

     o vício de falar 

     o vício de chorar

     o vício de querer um corpo

     o vício de viver 

A solidão não existe 

     nós é que existimos 

     na orla da nossa memória 

     outrora tumultuosa. 

     Há sempre uma voz 

     mesmo que silenciosa 

     num lugar raro

     que nos acompanha

     e sabe tudo de nós 

     mesmo o que escondemos. 

A solidão não existe

     o que existe são os outros

     os caminheiros inúteis 

     mortos antes e depois de nós

     e os rumores que deixam

     nas nossas gavetas. 

A solidão não existe 

     se não acreditas 

     leva contigo a verdade

     eu fico mesmo que enfraquecido 

     ao som de um violoncelo.

A solidão 

é uma chávena de café e um pão 

no início da madrugada.