Foto de Daniel Filipe Rodrigues




 
É por isto que o amor acaba

O amor teme o tempo
o amor teme a continuidade
o amor teme a sua construção ___
___ sólida 
o amor teme a banalidade

 

O amor vive da incerteza
o amor vive do clarão do primeiro encontro
que perde intensidade a escorrer dos olhos
sem nos darmos conta

 

Se os amantes soubessem
que palavras postas sobre a mesa
poderiam tornar-se um festejo ___
___ com elas poderiam escrever 
um romance a duas bocas.




 


 Foto de Augusto Rodrigues





Miúdos da minha escola


Da minha infância lembro-me

do vidrinhos

do gadocha

e do anão 

todos pequenos ___

___ alguns cresceram

um é mecânico 

outro assaltante de cafés 

e o outro está em ministro.






 Foto do autor do texto





Poema que nasceu ao balcão da cervejaria


Sentado ao balcão num daqueles bancos altos ___

___ uma imperial a borbulhar impaciente

e eu a fazer contas nas costas de uma factura


Pergunto ao empregado atarefado e desatento

se sabe que os juros aumentaram ___

___ ele trouxe mais tremoços 

percebeu

Os tremoços acabaram! 


a inflacção também chega aos tremoços? 

perguntei-lhe

e ele apresenta mais tremoços 

percebeu

  Não chegam os tremoços! 


Bebo a imperial já farta de esperar por mim

e saio sem tocar nos tremoços 

Afinal a vida 

é um lugar de sucessivos mal-entendidos

e eu sou um modesto consumidor de prazer

do que se paga barato e sem compromisso

como beber uma imperial e

desprezar os tremoços 

Grave, grave é a factura que trago no bolso

é a vida a ameaçar-me de morte

e o coração assustado a dizer-me

que sou um homem pequeno

para um coração tão ambulante e insubmisso.






 Foto de Daniel Filipe Rodrigues





Naufrágio 


Hoje estou naufragado

não avisto terra

mas avisto outros náufragos 


Diz-me tu leitor

se não sentes já 

a água pelo joelho ___

___ virás a ser um náufrago 

ou um salvador?




 


 Foto do autor do texto





 
 
O dia das coisas impensáveis 

Não é preciso que sejas bonita
preciso é que tenhas o cabelo curto
na cor que é a sua própria cor
que valorizes a beleza do que é simples
sem adornos, sem ouros, sem disfarces
que deixes os livros abertos virados
sobre o sofá 
que os leias dobrados numa só mão 
capa com contracapa
que gostes de música ___ 
___ sobretudo a barroca
que aprecies o calor do meu corpo
da minha alma
e que o digas
sem que tropeces na dúvida 
Não é preciso que sejas bonita 
podes até fumar ___ ao ar livre
em vez de te intoxicares com gosto
e uma mãozinha de polegar erecto
nas imagens da decadência social
Preciso apenas é que me deixes
ficar exilado dentro de ti

Desconfio que hoje é o dia
das coisas impensáveis.





Elogio do Horizonte - Eduardo Chillida

Gijón - Espanha





 

As palavras do poeta

Tomo do poeta

do velho poeta desaparecido

a certeza das palavras

as suas palavras

quase como se fossem

o seu invento

que das suas mãos discutindo

apalpava sílaba a sílaba 

até ao corpo final

Tomo do poeta

a longa sabedoria

que ofendia os homens

os pequenos homens ___ afinal

Há palavras de poetas que

nos transformam

nos convertem

nos envelhecem

mais do que o tempo.



 


 


 Foto (fracção) de Ana Catarina Duarte






Dentro de ti

Visto a tua roupa 
pinto a minha boca e os meus olhos 
assim 
parece que estou dentro de ti.










Onde me escondo 


Guardo algumas lágrimas 

entre as páginas de um livro 

esse é o lugar onde me escondo 

quando já ninguém me procura











Entra 


Eu sou a minha própria casa 

e deixo que habites nela

Entraste pelos meus olhos mas

___ ficaste à porta da minha boca







 Foto de Daniel Filipe Rodrigues





Poema que dava um fado


Tu és numa sentença 

um canto que me obriga

és quase uma doença 

a cruz que me castiga


Com todas que vieram

muitos anos se queimaram

e todas que viveram

comigo se casaram


Agora arrasto a cruz

faz sulcos pela terra

e a vida me conduz

p'los cardos de quem erra


Alguns cardos dão flor

e algumas serão rosas

decerto é o amor

a flor que não aprovas


Mata, mata esta canção 

mata como um algoz

rosas? não murcharão

quem morre somos nós 


A morte num abraço 

também se chama amor

morrer no teu regaço 

morrer com'uma flor




Só falta a música e a voz






 Foto do autor do texto





O milagre da natureza

O teu silêncio não cabe dentro do silêncio 

desfaz a laçada que tens na garganta

vai esculpindo as palavras

aplica-te mais naquelas dolorosas 


dos escombros também 

se pode levantar um poema ___

___ vá 

           fala

           reza

           canta

as palavras podem transformar-se

em serenidade

aquela serenidade que nos garante

que os amigos nos acompanharão 

que darão os mesmos passos 

pelo mesmo caminho


conversa com Deus

tu sabes que ele não existe ___

___ mas ele não 

o milagre da natureza é um mistério 

que não cabe dentro do nosso silêncio.