Foto do autor do texto



Oração breve


Ó Deus incompetente

o mundo não é apenas o teu mundo

o mundo é também 

a nespereira que vejo da minha janela. 


Ó Deus incompetente

eu tenho o poder de acabar contigo. 


Ó Deus incompetente

a mim só me serves

para descontinuar a minha morte. 


Ámen










 Vídeo do autor do texto



Só a fantasia


O que ficará no momento em que a aflição trespassar o ar? 

Uma cama por fazer 

alguma louça por lavar 

um livro aberto caído no chão 

luzes acesas sem razão. 

Queimei os meus olhos velhos a ler as Mil e Uma Noites

para descobrir 

em que lugares me esconder 

para que nada fizesse sentido 

que foi sempre o lugar da vida 

onde me encontrei comigo. 

O que ficará de nós? 

O que ficou de Dick Rivers? Uma voz muito ao longe.

O que ficou da Guinot? Uma lágrima e talvez mais outra lágrima.

O que ficou do Redol? O esquecimento que será para sempre.

O que ficará de nós? Uma brisa. 


Só a fantasia pode salvar-nos.



 


 Foto de Daniel Filipe Rodrigues



O afecto


Às vezes acredito 

na mão no sítio certo no momento certo 

na gota de água onde está a sua falta 

na voz mesmo que rouca que dedica um cântico 

no pormenor mais importante do que a generalidade 

no desejo sempre renovado como se hoje fosse o último dia. 


Às vezes acredito

no afecto como antecâmara do amor. 


Às vezes acredito

que isto é o que alguns humanos sabem para além dos deuses.



 





Sou assim


Não sou homem a quem se dê abraços 

sou esquivo no olhar 

sou distante no sorriso. 

Pensei enviar-te uma foto do meu corpo

mas desisti porque afinal 

quando nos queremos compreender 

é quase certo que nos incompreenderemos 

não no início 

mas quando a minha boca transita 

do trivial para o passo em falso 

como tentativa de chama

por isso desisti 

de te enviar a foto do meu corpo. 

A minha vida tem o mando 

que ela me ensinou 

esquivo no olhar 

distante no sorriso 

não sou homem a quem se dê abraços.



 





As mãos e as carícias 


As mãos 

exprimem as emoções, 

os sentimentos

assim se saiba do que falam

e não se rejeite a fala silenciosa

por em cada gesto

que pousa sobre o nosso outro

ir dizível a sensualidade. 

E se assim for

porque rejeitar, 

porque não coar

o dedo de mel

que se dá à prova?







A tua casa


A casa é antiga 

mas nas paredes ainda brancas 

de um branco mais vagaroso 

as sombras 

são das vozes antigas 

reconhecíveis 

ainda ali como outrora 

perdidas com o perfume do sândalo. 

Aquele Deus em que só tu acreditavas 

ainda lhe senti a brisa 

à sua passagem. 

Naquela casa as manhãs 

eram o pão ainda quente 

as cerejas, as nêsperas

e um sol diferente das outras casas. 

No armário já velho 

com as portas descaídas 

deixaste 

mãe 

o teu casaco.