Foto do autor do texto





Saída da escola


Nesta meia-luz já tarde 

fico a recordar 

a minha faceta de malfeitor 


Ouço a sineta 

e corro com dois cúmplices 

acabados de sair da prisão 

Nesse dia o assalto 

foi aos sacos de feijão 

à porta da mercearia 

O crime foi grave 

não roubámos mas misturámos 

mãos cheias de feijões 

uns com os outros diferentes

Depois fugimos.






 Foto de Daniel Filipe Rodrigues





Da série Poemas com dedicatória 


 

Poema de amor à moda antiga

porque isso nunca muda


Tomo o teu sabor com os meus olhos 

apenas com os olhos 

como se tocar-te 

quebrasse o encanto do encontro 

Nos lugares escondidos do teu corpo 

há um delírio que quero prolongar ___

___ desnudar-te é um clarão dos sentidos 

Tocar-te-ei é certo

quando o olhar no limite do êxtase 

já não for o som suficiente 

para alimentar a canção da lucidez

Então colherei tudo 

o que a tua pele me oferece 

com todos os lugares móveis do meu corpo 

até a tua respiração anelante culminar 

no desabafo dos teus sentidos 

e tu dirás o meu nome 

e repetirás o meu nome até eu ficar imóvel 

mas ainda mais vivo 

do que antes do sol se pôr.




 





Poema com dedicatória 

para ser lido como uma oração a nós próprios 


 

Uma flor de novo


Contra a adversidade

não me intimidarei

hei-de encher o peito 

as vezes necessárias 

e enfrentarei o desafio 

Eu sou a vida 

mas ainda assim 

na minha fragilidade e finitude 

sei que do mesmo caule

nascem várias flores

Estou ainda em botão 

vou florir outra vez.




 

 


 Foto AliExpress





Guerra 


deitei a cabeça no teu colo 

e tu 

com a tua pouca voz disseste 

     a guerra é um matadouro de sorrisos 

     uma fábrica de lágrimas 

     a guerra criará pelo mundo todo 

     uma onda de perdões 


O teu colo sempre foi a verdade 

com a tua pouca voz 

continuaste a acariciar o meu medo 

até o tornares apenas 

um breve lume que se extingue


Acordei anos depois na fronteira 

entre a mágoa e o desgosto 

onde uma família se desmembrava 

ao som de uma peça de flamenco 


Resiste à morte a bandeira tricolor.




 


 Foto do autor do texto





O que ficou


Sobre a mesa-de-cabeceira 

ficaram os teus brincos 

as últimas peças da tua desnudez.











 Foto do autor do texto





Depois


O que te peço é que me ajudes a viver 

    _ que recolhas do estendal 

     a roupa que não é minha 

    _ que tires da minha boca 

     as palavras que são tuas

    _ que guardes os perfumes 

     que davam cor às manhãs 

    _ que saias de dentro dos pijamas 

     que te emprestei 

    _ que apagues o deserto 

     que colocámos no meio de nós 

    _ que me devolvas a compreensão 

     que dizias ter pelos meus versos 

    _ que deixes ficar o tempo 

     que envelheci contigo 

    _ que mudes o nome 

     que dei ao teu cão 

    _ que não leves a madeixa do teu cabelo 

     que embrulhei em papel de seda 

     quando estavas doente 

    _que não te lembres mais 

     dos momentos em que estivemos separados 


Escreve a beijos no meu peito 

que nada disto foi em vão 

o que te peço é que me ajudes a viver 

depois podes partir.




 


 Foto do autor do texto




Da série "Poemas do futuro"


 

Ficam as marcas


Esta é a estranheza do costume 

de todas as vezes que aqui venho

era capaz de jurar 

que esta mancha redonda sobre o balcão 

é do teu copo 

o último que bebi contigo há três anos 

neste bar 

na noite em que queria dizer amor 

e apenas dizia dor 

noite em que falámos 

da imprudente entrega das mãos 

do fim da nossa virgindade 

dos filhos que nunca nasceram 

da casa que perdemos 

da memória das nossas viagens 

do fio de sangue que escorreu da minha boca 


nenhum de nós ousou dizer a palavra amor 

mas várias vezes dissemos dor 

falámos com propriedade dos versos de uma canção 

     Os amantes infelizes 

     deveriam ter coragem 

     para mudar de caminho 


Naquela noite saímos do bar 

ainda de braço dado e fomos capazes 

de um beijo de despedida 

sem palavras 

sem lágrimas 

voltávamos a ser dois desconhecidos 

e eu a disfarçar o pânico 

da claridade vazia do dia seguinte 

e desencantado por saber que não choravas

quase certo porque nunca te vi chorar 


Esta carta sem destino ___ sem morada 

ficará para sempre perdida na minha gaveta 

e a dor fica como a marca do teu corpo 

como a marca do teu copo 

na madeira do balcão ___ três anos depois. 


 

Salamanca 2025