Uma fotografia, uma memória. 


Foi uma espécie de destino

que escolheste para ti

depois do desterro sem pranto. 

Os nossos encontros jubilosos

num hotel de várias estrelas 

que eu pagava antes de chegares

alimentaram os rumores de amor

que tinhas no corpo, apenas no corpo. 

A casa cheia de pó lá continua, igual

e as tuas mãos impressas no espelho

ainda estão visíveis, escorrendo. 

Foi disto que me lembrei quando

encontrei agora a tua fotografia. 


Vou pedir uma groselha com gelo.





 Foto do autor do texto




Uma pessoa é uma pessoa-

-disse a minha mãe 



Há uma claridade ao fundo do corredor

da minha casa. 


MÃE! 

-O tio fechou-se no quarto e disse muitas vezes:

          - Solta as cabras, mulher! 

-Deixa lá filho, o tio hoje veio "atravessado"

-A tia diz que ele já não serve para nada. 

-Sossega filho! 

MÃE! 

-Podemos deitar o tio fora? 

-Não, filho! O tio é uma pessoa, não se pode "deitar fora". 


Setenta anos depois. 

Há uma claridade ao fundo do corredor

desta casa onde estou. 

Sinto-me em segurança 

a minha mãe não vai permitir que me "deitem fora".







Nesse mistério acordo


Não descubro esse mistério 

que trazes nesse teu corpo. 


Sendo uma mulher do sul

tens o teu peito rosado

e os teus olhos de cores

verde azul e de mais cores. 

Trazes em ti muito mar

e o escuro dos teus braços 

quando abraçam vigorosos

trazem o mistério que guardas

nesse teu corpo mulato

ainda brilhante de sal

que trazes desse teu sul. 


Provo-te, tomo o teu sabor

e esse mistério que trazes

oferece-me um sonho profundo

mas acordo sempre só. 




 





Ólha que poeta! 


Como-te poesia e bebo-te 

nos versos de outros poetas

quando encarno em mim o poeta. 


O poeta que vê com olhos destinados

a ver o que não há. 

O poeta que fala com palavras

de onde se tiraram as letras. 

O poeta que diz "liberdade" 

como se dissesse "estou a chegar". 

O poeta que escreve "grande é o homem" 

e acaba sozinho num lugar obscuro. 

O poeta canibal de poetas

criador de carne para outros. 

O poeta que sonha como o homem comum

e acorda perdido no futuro. 

O poeta vivente de uma história 

sem relação com a história dos outros. 

O poeta obcecado com as ideias, 

as palavras construídas e 

com as contas encardidas por pagar. 


O poeta que se suicida 

para que a poesia deixe de ser trágica, 

desnuda-se de tudo até da sua sombra.







Fogo


No meu ventre há um fogo

e uma luz que vem das montanhas. 

Os sulcos que vejo no caminho são já antigos

e iluminam-se, mal sonho que podes chegar. 

Nas montanhas há uma luz

e um fogo do seu ventre. 

Os sulcos que vejo no caminho iluminam-se

com a chegada mortífera da natureza. 


Quem disse que a natureza é perfeita? 

Foi a própria natureza, dizem. 

Desdigo essa certeza,

não há natureza nem deus

que dite a sua própria perfeição. 

E o fogo chega, imparável. 




 


Foto de Bartolomeu Rodrigues 



Ver chover é como lavar os olhos

do pó dos outros dias


Lembras-te quando chovia na janela do nosso quarto? 

O "pizzicato" dos pingos lançados contra os vidros

era a nossa música… no nosso conforto

e havia sempre uma loucura nos teus cabelos

e um brilho terno na tua cara. 

Até acreditávamos que só chovia na nossa janela. 


Hoje dão medo os pingos de encontro aos vidros

abafo o som da chuva com palavras de maldição. 

Hoje chove no meu quarto, 

chove na minha vida, 

chove na minha memória, 

chove na minha cara, 

chove sobre ti, 


chove, 


chove, 


chove.








Quando adormeço, quando acordo


Quando é muito de noite

e te vais embora

sem me aconchegar o sono, 

ouço todos os pequenos ruídos 

do meu silêncio 

e vejo nas cortinas por detrás 

da luz coada da janela 

as sombras do que não está. 

Para adormecer penso

que vou numa jangada

parada no mar e no tempo. 


Depois, quando acordo

já ali estás outra vez.

Nem dá para ter saudades.








Quem são? 


Quem são os verdadeiros heróis? 

Quero conhecer alguns. 


São os monstros sempre sentados

com os ânus confortáveis 

sempre a arregaçar o dinheiro? 

Ou

As hienas descaradas que

apalpam as coxas de quem trabalha

com o suor dos outros

a escorrer no pensamento? 


Ou

São os corpos cansados

com dedos amputados e

palavras a fermentar

nas bocas indignadas? 

Ou

As mulheres meio gastas 

com olhos aprisionados 

consumidos nas máquinas e

com os filhos no regaço? 


Quem são os verdadeiros heróis? 

Quero conhecer alguns.








Não pedi


E se eu te dissesse agora que já não queria nascer? 

Que farias ao teu desejo consumado

à tua decisão pessoal ou em grupo? 

Irias pedir que não te iluminassem as entranhas

ou deixavas de ouvir o meu apelo

coberto com os sons do teu prazer? 


Mas não, 

gostarei de ter nascido. 




 




Poemas herméticos


Não consigo escrever um poema hermético 

como fazem alguns verdadeiros poetas. 

Faço um esforço para escolher palavras

desencontradas mas que sobrevivam

ao lado umas das outras misteriosamente. 

Escrevo

              uma luz das montanhas e o ventre

             que vem de um fogo. 

             

Mas logo as palavras se guerreiam porque

se acham no direito de dar sentido à sucessão. 

Então intervenho e troco-as de lugar

             No meu ventre há um fogo

             e uma luz que vem das montanhas. 


Poeta de poemas herméticos, não!

Porque não resisto ao poder das palavras

e deixo que se alinhem e falem como querem. 


Zango-me ternamente com elas, 

vou-me embora do poema, 

volto quando me chamarem. 




 





Mais um Inverno na minha vida


Sinto um conforto triste quando chega o inverno

e faço a minha cama com lençóis de flanela. 

Tudo me cheira a passado no aroma dessas roupas. 

Não consigo evitar uma certa liturgia nesse afazer

que quero lento e envolve música e recolhimento. 

Feita a tarefa deito-me sobre o meu passado

e adormeço num sonho da minha infância. 




 


 Foto de Bartolomeu Rodrigues



Herança 


Abre o teu caderno e escreve nele o meu nome

depois anota o que te deixarei.


Os restos daquele Deus que reneguei. 

A vontade que tenho de fazer uma revolução. 

Os cactos que plantei por cada amigo que perdi. 

Todas as noites escuras onde tentei matar-te

na minha cansada memória. 

As canções estranhas que cantei para te agradar. 

Aquele copo onde ficou a tua boca. 


Deixo a porta encostada, 

vigia-me até ter deixado de respirar.








Aos poucos disseram-nos para deixarmos de caminhar 

e que haver sol ou chuva passou a ser indiferente, 

fomos separados, os nossos ficaram do outro lado. 

Acordámos com as palavras dos outros sobre os outros, 

a água deixou de ser suficiente para nos banharmos 

e por entre fantasmas nasciam outros fantasmas. 

Só não confinámos os nossos pensamentos porque

achámos que a mudança ia ser o momento da justiça.

Foi um pesadelo que se repetirá por milénios. 


Reparo agora que nem tive tempo de comprar flores

para que ficasse mais real e bela a minha jarra nova. 

Lanço os versos e o corpo no abismo

e adormeço.