Foto de Daniel Filipe Rodrigues
em Frederiksborg Slot
O repouso
Ao velho guerreiro
lançam pedras à sua janela
pintam a porta da sua casa
lançam fogo ao seu jardim
O velho guerreiro foi vencido
a idade é uma mão a fechar-se.
Foto de Ana Catarina Duarte
Todos à rua
Afinal o que é a obscenidade?
é uma boca a mentir aberta ou fechada
é uma troca de olhares ilegais
é a falta de uma sopa hoje e amanhã
é o desejo impossível de ser pai
é uma janela dourada que nunca se abrirá
Venhamos então para a rua
alterar a ordem pública
HÁ OBSCENOS NO PODER!
Foto de Daniel Filipe Rodrigues
Estás longe
cada vez mais longe
Chora ___
___ o bandoneón chora
e arrasta nesse choro o violino
no momento certo
o mais curto e belo embora triste
em que uma nuvem
turva a tua silhueta imóvel ___ ao longe
Piazzolla
comprime e comprime a dor
e são os sons aflitivos que sílaba
a sílaba se inscrevem na memória
Ficou a rosa ainda fechada que deixaste
tão parecida afinal com o teu sexo.
Foto de Daniel Filipe Rodrigues (fragmento)
A espera da água
Esperei toda a vida
a possibilidade de uma fonte
com as minhas mãos
construi dois copos em barro
para celebrarmos
as primeiras gotas
Entretanto vivemos apenas
com a chuva ___
___ a sua chegada
___ e a sua partida
Tanto tempo de espera contado
o barro dos copos voltou à terra
que o recolheu aos poucos
acabamos sempre com as mãos
em concha à espera da chuva
Parece quase cruel
que a espera de uma fonte
dê lugar a um poema
para nos matar a sede.
Tens pressa de viver
Sempre preferiste os poemas curtos
para não teres que desdobrar sentimentos
Eu canto os infelizes ___ os nostálgicos
os que não acreditam no amor.
És jovem ___ já não tens tempo a perder
concedo-te o privilégio de seres insolente
e de eu te perdoar.
Podes partir ___ leva este curto poema.
Foto do autor do texto
Que raio de nome
Libertino foi o nome que me deram
antes terem-me chamado Jesus ou Lenine
mas Libertino não lembra ao diabo
Cada vez que me chamam
é uma martelada num dedo incauto
o silvo de uma serra elétrica assassina
um gole de água a ferver boca a baixouma corda a correr que me corta a mão
Isto sou eu a pensar
Eu escolho o próprio nomechamem-me Solilóquio a partir de agora.
Foto de Daniel Filipe Rodrigues
O resultado
Sou o resultado de um longínquo acto
cuja justificação desconheço
se houve amor
ternura
prazer
ou apenas um acaso
Quem?
requereu esse momento fecundo ___
___ com que palavras?
e depois com que receios ou alegrias?
na possibilidade de um nome
com voz e memória ___ com passos
na preparação para o fim do mundo
Sou o resultado de uma boca escancarada
e de gotas de suor
no embalo de uns quantos murmúrios
num acto sem ponderação
E eis o humilhante resultado
fui surpreendido a lavar a dentadura
numa casa de banho pública.
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