Alinhavos


Eu vou mas volto. Será assim a minha definitiva despedida.






A visita anual

Quando vos espero
desembaraço-me dos meus afazeres, 
ponho a mesa com tudo aquilo de que gostam, 
faço as camas com os vossos lençóis de sempre, 
faço a barba e visto a melhor roupa. 

Depois é querer agarrar o passado
sem que ele nos caiba nas duas mãos. 
Calam-se muitas palavras na garganta
mas falamos muito para nos darmos a ideia
de que vivemos ainda na vida uns dos outros. 
E quando relembramos aquelas histórias da infância 
contadas mais uma vez já com retoques
para serem mais ternas e terem graça 
rimo-nos com aqueles curtos risos
que convivem com uma ou outra lágrima. 

Ouço as vossas vozes adultas mas agudas
como se fossem as do passado. 

Oculto o desejo inconveniente de vos sentar nos meus joelhos
e ao falar no que me falta viver logo o tumulto gerado
cala a seriedade da minha confissão, do meu temor
como se quisessem manter a surpresa da última visita. 

Chega o momento dos abraços e dos beijos
os projectos de regresso que todos sabemos 
que não sabemos quando
ou talvez um ano depois como de costume. 
Fica então o silêncio, ficam as fotografias, 
as camas desfeitas, o resto das migalhas sobre a mesa
e um grande vazio que não mais será preenchido.







TIVE DE
              DESCER
                             TRÊS DEGRAUS

  para te abrir a porta do meu jardim

                                   MINHA CASA
                      PARA A
       SUBISTE

combinámos o encontro para conversarmos. 
Sentámo-nos na pequena varanda do sótão 
onde tantas vezes estivemos a ver o pôr do sol. 
Estávamos tristes e ambos com aquele
sentimento de perda. 

Gritaste:
N Ã O  QUERO MAIS ! 

Lancei-me da
     
                JA
          NE
           LA
                                 A
                                   B
                                     A
                                       I
                                       X
                                        O

morrendo de imediato. 
Voltei para vos contar este meu infortúnio.
Agora vou

                   RATLOV

para onde fui naquele dia.


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Alinhavos



Caminhas no parque já meio trôpego. 
-Senta-te à sombra dessa árvore e espera que te venham buscar! 
……….. 
Já é noite. 






Arranco mais um verso novo
jogo um pouco com as palavras
tanto me interessa o que é triste e dor
como falo de flores de seda e da cor. 
Dou-me aos outros dose a dose
nem me ocorre a ilusão 
de que me ouve um irmão. 
Mas depois de muitas águas 
mas depois de muitos ventos
abrimos as nossas janelas
acenamos uns aos outros
olhamos para o chão em frente
e junto com as flores de seda
ainda lá estão as palavras.






Um nome é uma mala que trazes com os teus pertences
à sua evocação estremeces porque uma boca disse o teu nome. 
Repara como são poucas as vezes
que há uma língua e uns lábios que se movem para te eleger.






Postal enviado a um amigo que perdi de vista

Sento-me neste café em Mafra
e lembro-me que foi aqui
que me encontrei contigo
talvez há 50 anos
para te pedir que não desertasses,
todos éramos necessários 
dentro da corporação 
para passar aos outros
a consciência daquela guerra. 
Não foi uma tarde Alegre
e nunca pensei ser tema para um Poeta. 
Ouvimos o bronze do Convento
e nunca mais nos vimos. 





Marvão


Meus amigos, 
já é tarde, 
sabem como faço? 

Leio umas páginas recostado na cabeceira
e quando estou certo de que ninguém vai ocupar
aquele lugar vago há anos
aconchego a cabeça na almofada
apago o dia para ficar a pensar nele
e fico a olhar para as tiras de luz suave
que vem do resto do mundo
até adormecer.





 Alinhavos


Levanto-me e saio para que o tempo não deixe marcas.

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Entre as palavras me escondo e me acolho.






Poema ao filho que vai nascer
Esta manhã o vento vai apagar o fim da noite e será o princípio de tudo.
Esta manhã o vento vai acordar o dia e medi-lo em palmas da mão
de dedos entrelaçados.
Esta manhã o vento vai contar hora a hora as sombras que o vento leva as horas que o vento traz.
Esta manhã o vento promete que o dia começa e é o fim do silêncio.
De quantos passos se faz o fim da noite e o princípio do dia?
Esta manhã o vento traz o princípio do mundo.




Óbidos


Alinhavos


Temos saudades do nosso corpo antigo.
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Há uma ave negra pousada no parapeito da minha janela.






Hoje amanheceu triste
a minha casa está no centro do nevoeiro
ouço o mar e ao longe o farol
canta a sua tristeza repetidamente
o que quer dizer que o nevoeiro
está aqui e em todo o lado. 
Cheira à roupa lavada que levaste
e ficou ali um copo com a marca dos teus lábios 
que pintaste antes de saíres,
ainda vejo as marcas dos teus sapatos
na areia molhada. 
Fico à janela à espera 
que o nevoeiro desista de te esconder.






Guardo-te sempre quando é noite
mas peço-te que nasças quando há Sol.
A diferença entre o escuro e o claro,
entre a verdade do princípio e a verdade do fim
és tu, o teu som e o teu aroma.
Grandes serão os dias que vão nascer
da tua vontade de viver.
Quando acordar,
passarei a minha mão ao longo do teu lugar
onde haverá calor todos os dias
e onde entrarei por ti devagar
e ao mesmo tempo de rompante
como se nascesse para dentro de ti.

Guardo-te sempre quando é noite!





Amesterdão


Digo Boa Noite nas marcas da tua ausência 
 nesse lugar circunscrito pelas flores naturais
 que deixam do teu corpo um contorno
 como campo ardido numa cama absurda. 
 Tão absurda quanto as dedicatórias autografadas
 em livros que guardo em lugar incerto. 
 Tão absurda quanto o desejo de me recolher
 num lugar onde contemple a chuva
 por necessidade de me sentir triste. 
 Tão absurdo como um perfume caro
 que por isso se usa com parcimónia. 
 Tão absurdo como um exército 
 encomendado a Deus por um capelão militar. 
 Tão absurdo como a saudade do passado
 num lugar onde tu não estavas. 
 Absurdo como o meu regresso.



Sintra


Um dia acordarei ao teu lado outra vez e
nessa manhã inicial tudo retomará o seu lugar,
não mais a fuga para o sono
não mais o medo de acordar.
Não importa se haverá chuva ou sol nesse dia
porque a luz, muita luz, estará sobre as nossas cabeças e
um violoncelo ao longe que só nós ouviremos
anunciará que hoje será já amanhã.
Nessa manhã de novo inicial onde a palavra amor 
não será pronunciada,
as mãos, os olhares, a pele sobre a pele
serão a única linguagem permitida e
as palavras serão apenas ternura.
Nesse dia em que acordarei outra vez ao teu lado
vou dizer-te que já não me vou embora.




Toledo



Alinhavos

Guarda as tuas exclamações para quando as flores desabrocharem.

🍁🍁🍁

Há um gosto inteiro que nos morde a boca.




Paris


Escrevo-te agora quando é noite e tudo se acalma,
escrevo-te agora batendo-me contra o silêncio,
escrevo-te agora enquanto o sono te leva,
para te dizer que ficarei acordado, que guardarei o teu sono
para que o teu sonho não seja perturbado.

Escrevo-te agora as palavras perdidas, para te proteger, 
escrevo-te agora, na noite, para que corpo, palavras e sonho
sejam a forma de te encontrar como uma flor no meu deserto,
e depois,
segredo-te ao ouvido a palavra amor e adormeço nos teus braços
como se morresse numa manhã de inverno.




Castelo de Vide




Alinhavos

A mão abraça o intervalo entre a angústia e o perfume queimado.

A Arte é o sangue picante e doce.