Sobre as palavras
Agarro nas palavras
e umas vezes seduzo-as
dando-lhes o prazer de as juntar com outras
outras vezes contrario-as
e não lhes dou o significado que elas querem
a algumas quando se rebelam ameaço-as
de as deturpar no que querem dizer
ou até de as calar
quando ganho confiança com as palavras
a algumas desdobro-as
e vejo que recheio contêm
gosto das palavras ___ de todas
e já não posso viver sem elas.
Os cantos da minha vida
Não alteres uma só palavra
de tudo o que disseste
nada apagará esse fogo ___
___ já tive uma casa nesse inferno
já tive uma cama nesse Inferno
no tempo em que apenas contava
manter limpos os cantos da minha vida
sem sucesso ___ no entanto
dizias nesse tempo
que a luz era o pôr-do-sol
e que as palavras nada valiam
afinal já não existes
nem tu
nem o amor
nem a compaixão
nem as mentiras
nem as palavras
ardeu tudo ___ mantenho limpos
os cantos da minha vida.
A prisão lá fora
Suporto este sorriso há décadas
sei que há uma vigilância
sobre os que não sorriem
já não somos os donos da nossa boca
direi mesmo
das nossas palavras
do riso
dos esgares
por isso suporto este sorriso há décadas
e reconheço nos outros
o decalque do meu sorriso
vejo a verdade das bocas
apenas em privado ___ boca com boca
e aí também entram os olhos
e a sua função
aí os olhos e as bocas articulam-se
na sua liberdade privada
e usam-se na fala
ágil e expressiva ou
lenta e dolorida
é nesse esconderijo
que amamos
ou odiamos
nessa antecâmara de liberdade
de onde saímos com um sorriso de décadas
para essa prisão lá fora.
Não voltarei
Pregaram a minha alma numa parede ___ à força
à força de não se entenderem as minhas confissões
as minhas confissões de que fui tomando
as sombras dos outros e as perdi
perdi o ombro com ombro com os que me seguiam
que me seguiam na ideia de que a minha vida
não se esgotaria
esgotei-me até não poder mais com as manhãs
que se abriam nos meus lençóis
e as noites que me aprisionavam
na aflição de mais um copo
por tudo isto
pregaram a minha alma numa parede ___ à força
nada me será perdoado
e aqui não voltarei nunca mais.
A louca realidade
Tenho aves esvoaçando na minha mente
um violoncelo sublinha este crepúsculo
que me escreve lágrimas
e que me impõe
aves esvoaçando na minha mente
como é triste e mata
a ausência das palavras
a loucura é apenas um estado de espírito
que nos ajuda
a suportar a louca realidade.
Virtude
Era o que eu trazia comigo
uma virtude
feita em pedaços por um machado de palavras
de nada valeu dizer
amor
amante
flor
esperança
e já em desespero dizer
mãe
tudo em que eu acreditava
estava perdido
o significado das palavras tinha sido alterado
dizer verdade
era agora como dizer obscuro
dizer para sempre
era agora como dizer não é possível
dizer quero-te
era agora como dizer efémero
dizer hipocrisia
era agora como dizer modernidade
e por aí fora num dicionário
inútil e sem folhas
era o que eu trazia comigo
uma virtude
e a razão de ser
a poesia.
