Foto do autor do texto


As ausências 


As ausências são o alimento da nossa confiança 

e da nossa intimidade com a solidão 

deixamos de a temer 

ganhamos a sua dedicação

e começamos a tratar-nos por tu ___

___ é como se estivéssemos algemados

ao perfume das tangerinas

e fossemos torturados a golpes de ternura

que não sabemos de onde vêm 


vem cá solidão ___ dá-me um beijo e vem comigo

decerto teremos alguém à nossa espera.



 

Foto do autor do texto



Como se é doce

e se amansa a vida


A minha vida tem a ordem

que ela própria me ensinou, 

detenho-a quando eu quiser, 

uma voz diz-me

     -agora ainda não! 

Por ti abro a janela e olho

lá fora o cair da tarde e

o sol a ser vencido pela sombra, 

as aves que desistiram

da nossa terra ___ por agora

partem para longe. 

Fecho a janela, sento-me e 

vejo tudo nos lugares de sempre, 

é noite outra vez. 

Ainda não descobriste

como se é doce e 

se amansa a vida.



 

Vídeo do autor do texto



Ser morto


Na morte cobrem o morto

com um lençol branco

para que não se envergonhe

de estar morto


e enlaçam-lhe um fio com um cartão 

no dedo do pé eleito ___ o maior

para que ele possa dizer quem é 

nesse lugar decisivo ___ 

___ irrepetível para ele


só a partir desse momento

se deve chorar o morto

porque o morto antes de ser morto

não deve ver as lágrimas 

para não desanimar

na função em que a vida o investiu


mais lágrimas vêm depois

em presença do corpo e das flores

no lamento que o morto já não ouve

mas a que pode assistir lá do alto

para que sofra com o sofrimento dos seus


consta que ser morto não é fácil 

por isso vou morrer sozinho

e não dou notícia a ninguém.



 

Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Contemplo a vida


Esta é a minha cadeira de Outono

o lugar da minha cópula com a vida

que tento possuir como nunca fui capaz

como se prestasse atenção 

ao meu coração a bater

neste enlace descubro-lhe o corpo

nas suas cores e nas suas sombras

e nesta cópula de Outono 

descubro-me homem

na minha profundidade

ocidental no lugar onde me hospedo

lúcido em vários regressos do caos


indignado com a minha resignação 

fico-me nesta cadeira de Outono

o lugar da minha cópula com a vida

esperando pela próxima Primavera.



 

Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Procuro-me 


Tento encontrar a minha boca 

na tua boca 

porque me ficaste com as palavras 

quase todas

porque levaste a mão à boca 

depois do beijo 

porque respiras na cadência 

com que eu respiro 


tento encontrar as minhas mãos 

nas tuas mãos 

porque me ficaste com as carícias

quase todas

porque deixei os meus dedos 

nos teus dedos 

porque respiras na cadência 

com que eu respiro


tento encontrar o meu sexo 

no teu sexo 

porque me ficaste com o meu lume 

quase todo

porque me deixaste abrigar-me

nesse céu 

porque respiras na cadência 

com que eu respiro


Nasço do mistério 

do beijo 

da carícia 

das tuas entranhas.



 

Foto do autor do texto




Memórias 


Abro uma lata de conserva

e deparo com as minhas memórias 

preservadas em molho de Outono

fui-me a elas e comi-as todas.








Até à vista


Era impensável mas esperada

a tua morte

não podia imaginar mas tudo fazia prever

que morresses


sempre foi credível o que escreveste

e o que acabas de dizer 

sem palavras ___ com silêncios 

é que somos efémeros 

mesmo na pele dos outros


deixamos para trás 

a nossa imagem ao espelho 

a nossa escova de dentes

os nossos sapatos

as nossas preocupações 

as nossas blasfémias 

o nosso sangue


esforço-me para me lembrar 

da tua cara ___ do som da tua voz

conservo uma foto onde estamos juntos 

conservo o teu número no meu telefone

tudo ficará junto 

com o que eu deixar para trás


Até à vista!


 

 

Na morte de um velho amigo muito próximo