Miauuuu!
A vaidade e a sobranceria
são as tuas características
ingrato abandonas o lar
logo que a vigilância afrouxa
depois voltas quando
o teu interesse te comanda.
Mesmo assim gosto de ti
e guardei-te um carapau
do meu almoço.
Volta para casa… vá!
O que significa estar vivo
Lentamente escrevo
sobre o que significa viver
e surge aquela
pequena figura branca
uma roupa sem gente
um vestido vazio
a preto e branco
com um nome
que não sou capaz de dizer
para que isso não faça rolar
as enormes pedras
encosta abaixo.
Cubro de tinta branca
todos os meus desgostos
e medito sobre
o que significa viver
e calo em mim a revolta
contra os homens deuses
que decidem
que os nossos dias acabaram.
Lentamente escrevo
plantem-me num campo de papoilas.
As minhas e as tuas mãos
Em nada resulta
o movimento das tuas mãos
enquanto o dia não nascer
por muito que amasses
a noite e os teus cânticos.
Em nada resulta
o movimento das minhas mãos
no afago do teu peito
inábil na recusa.
Em nada resulta
a sucessão dos dias e das noites
e a oportunidade da alucinação
que se oferece aos sentidos.
Condenamos as nossas mãos
e somos nós próprios
os carrascos do amor.
É o que resta
O que resta do passado
são os jardins familiares
as flores indignadas
prisioneiras eternas
a quem chamam seres vivos.
O que resta do passado
são as sombras indignadas
por não terem direito
ao seu quinhão de luz
à sua própria morte.
O que resta do passado
é o resumo do próprio passado
confuso e desordenado
em que os fotogramas se baralham
e os espaços em branco
se preenchem dolorosamente
cheios de imprecisões.
O que resta do passado
somos nós
na doença crónica dos nossos olhos
e na insensibilidade
da nossa pele tão sábia.
Como uma vida nova e especial
Agrada-me
ver-te com essas flores no cabelo
Agrada-me
a clareza do teu silêncio
Agrada-me
que escutes comigo e te enleies
na minha música
Agrada-me
que não me deixes sozinho
durante a noite
Agrada-me
que me sossegues com palavras
que explicam o vento tempestuoso
No entanto
nada me parece tão belo
quanto o teu beijo ao despertar
como se a nossa vida todos os dias
tivesse uma forma nova e especial.
Na Tate Modern
Sento-me naquela penumbra
em frente ao Rotko
como que um crepúsculo interior
permite-nos a revelação
do vermelho abatido da obra
que invade todo o espaço
e não permite mais nada
a não ser tentar a descoberta
da palavra certa.
As pinturas de Rothko, exibidas como ele pretendia numa sala compacta com iluminação subtil.
Mark Rothko via essas pinturas como objectos de contemplação, exigindo total absorção do espectador.
Excerto de texto em Tate Modern
Recordações e pensamentos à maneira de Proust
Hoje reconheço-te o sorriso que tinhas na tua juventude
que certamente se deve a estares à sombra
dessa cerejeira da tua infância.
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A luz trémula que resta acesa durante a noite no meu quarto
ilumina a tapeçaria antiga com um desenho assustador
que aparece nos meus pesadelos.
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O que ficou das minhas férias na praia que me é familiar
é o sol que ilumina agora a relva do meu jardim
desta casa imensa, silenciosa e cheia de sombras.
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Já corre por toda a casa o aroma que anuncia
que os pequenos bolinhos de manteiga
estão a sair do forno.
O sonho indiano
Era a Rainha Indiana dos meus sonhos
uma Rainha com todo o corpo descalço
de seios brancos e musicais
de cabelos longos negros e brilhantes
pontuados de gipsofilas rosa.
Mesmo sem palavras eu tudo entendia
no meu êxtase vedado à realidade
uma lâmina longa e fria trespassou-me
pelas costas ermas na escuridão.
Ouvi ao longe um homem que cantava
uma canção que provocava um halo.
E eu adormeci.
De manhã
Hoje de manhã
olhei-me ao espelho
com muita atenção ___
___ pela janela
ao meu lado esquerdo
a luz fresca e branca
iluminava metade
da minha face
foi um momento
para dizer a verdade
a mim próprio ___
___ a metade iluminada
e a metade na sombra
confrontaram-se
com aqueloutro
que sempre
me contemplava
no desgaste
das manhãs.
Salvou-me o aroma do café.