Foto do autor do texto



 
 
 
Miauuuu! 

A vaidade e a sobranceria 
são as tuas características 
ingrato abandonas o lar 
logo que a vigilância afrouxa 
depois voltas quando 
o teu interesse te comanda. 
Mesmo assim gosto de ti 
e guardei-te um carapau 
do meu almoço. 
Volta para casa… vá!




 Vincente Van Gogh



 
 
O que significa estar vivo

Lentamente escrevo 
sobre o que significa viver
e surge aquela 
pequena figura branca 
uma roupa sem gente 
um vestido vazio 
a preto e branco 
com um nome 
que não sou capaz de dizer 
para que isso não faça rolar 
as enormes pedras 
encosta abaixo. 
Cubro de tinta branca 
todos os meus desgostos 
e medito sobre 
o que significa viver 
e calo em mim a revolta 
contra os homens deuses 
que decidem 
que os nossos dias acabaram. 
Lentamente escrevo 
     plantem-me num campo de papoilas.


 


 Foto do autor do texto



 
 
As minhas e as tuas mãos 

Em nada resulta 
o movimento das tuas mãos 
enquanto o dia não nascer 
por muito que amasses 
a noite e os teus cânticos. 
Em nada resulta 
o movimento das minhas mãos 
no afago do teu peito 
inábil na recusa. 
Em nada resulta 
a sucessão dos dias e das noites 
e a oportunidade da alucinação 
que se oferece aos sentidos. 
Condenamos as nossas mãos 
e somos nós próprios 
os carrascos do amor.


 


 Foto de Ana Luís Rodrigues



É o que resta

O que resta do passado 
são os jardins familiares 
as flores indignadas 
prisioneiras eternas 
a quem chamam seres vivos. 
O que resta do passado 
são as sombras indignadas
por não terem direito 
ao seu quinhão de luz 
à sua própria morte. 
O que resta do passado 
é o resumo do próprio passado 
confuso e desordenado 
em que os fotogramas se baralham 
e os espaços em branco 
se preenchem dolorosamente 
cheios de imprecisões. 
O que resta do passado
somos nós 
na doença crónica dos nossos olhos 
e na insensibilidade 
da nossa pele tão sábia.


 


 Foto do autor do texto



 
A arte primeiro

A inquietude das mãos 
o apelo incontido
de captar a luz
dentro de alguns traços 
é tão intenso
que a vida passa
para uma dimensão 
menos importante
é a vitória do sol
sobre o crepúsculo.


 


 Foto do autor do texto



Como uma vida nova e especial

Agrada-me
ver-te com essas flores no cabelo
Agrada-me
a clareza do teu silêncio 
Agrada-me
que escutes comigo e te enleies
na minha música 
Agrada-me 
que não me deixes sozinho
durante a noite
Agrada-me 
que me sossegues com palavras
que explicam o vento tempestuoso
No entanto
nada me parece tão belo
quanto o teu beijo ao despertar
como se a nossa vida todos os dias 
tivesse uma forma nova e especial.


 


 Foto The Telegraph



 

Na Tate Modern


Sento-me naquela penumbra

em frente ao Rotko

como que um crepúsculo interior

permite-nos a revelação 

do vermelho abatido da obra

que invade todo o espaço 

e não permite mais nada

a não ser tentar a descoberta

da palavra certa. 




As pinturas de Rothko, exibidas como ele pretendia numa sala compacta com iluminação subtil. 

Mark Rothko via essas pinturas como objectos de contemplação, exigindo total absorção do espectador.

Excerto de texto em Tate Modern 



 


 Foto de Daniel Filipe Rodrigues





Recordações e pensamentos à maneira de Proust



Hoje reconheço-te o sorriso que tinhas na tua juventude

que certamente se deve a estares à sombra

dessa cerejeira da tua infância. 


__________


A luz trémula que resta acesa durante a noite no meu quarto

ilumina a tapeçaria antiga com um desenho assustador 

que aparece nos meus pesadelos. 


__________


O que ficou das minhas férias na praia que me é familiar

é o sol que ilumina agora a relva do meu jardim

desta casa imensa, silenciosa e cheia de sombras. 


__________


Já corre por toda a casa o aroma que anuncia

que os pequenos bolinhos de manteiga

estão a sair do forno.





 


 
O sonho indiano
  
Era a Rainha Indiana dos meus sonhos 
uma Rainha com todo o corpo descalço 
de seios brancos e musicais 
de cabelos longos negros e brilhantes 
pontuados de gipsofilas rosa.
Mesmo sem palavras eu tudo entendia 
no meu êxtase vedado à realidade
uma lâmina longa e fria trespassou-me 
pelas costas ermas na escuridão. 
Ouvi ao longe um homem que cantava 
uma canção que provocava um halo. 
E eu adormeci.

 



 






Os espaços brancos

Não é a aridez da terra
não é um deserto
é a luz que de tão forte
preserva apenas os contornos
e liberta a beleza
dos espaços vazios ___
___ tudo está em silêncio.




 Foto do autor do texto




De manhã 

Hoje de manhã 
olhei-me ao espelho 
com muita atenção ___ 
___ pela janela
ao meu lado esquerdo
a luz fresca e branca
iluminava metade
da minha face
foi um momento
para dizer a verdade
a mim próprio ___
___ a metade iluminada
e a metade na sombra
confrontaram-se
com aqueloutro
que sempre
me contemplava
no desgaste
das manhãs. 
Salvou-me o aroma do café.