Sirvo-me de ti oh poeta e copio um dos teus versos
depois rasuro, apago, acrescento, altero. 
Como este que aqui vai
"Que abismos sobre este corpo estranho"
Que estranho o verso que fala desse teu corpo estranho, 
quando um corpo é um abismo eu acrescento oh poeta
que quem nasce num abismo nada lhe parece estranho
e a estranheza do teu corpo são os abismos dos outros. 
Que corpo é esse oh poeta mais estranho que os abismos? 
Eu acrescento ao teu verso 
que um corpo não sendo estranho poderá ser um abismo. 
Agora, lanço o verso e o corpo nesse tal abismo estranho
e adormeço. 

Sobre um verso de A. S. C.






Quando não tinha onde esconder as mãos
deixava-as sem a obrigação de obedecer.
Então, por vezes
elas acenavam, ou falavam, ou criavam.
Outras vezes
elas insultavam, ou agrediam, ou roubavam.
Depois voltavam
e ele recebia-as
deixava que adormecessem
e escondia a sua nudez
   com elas. 




 


Aconselho, sem comentários, só lendo.





Hoje procurei-te em Guernica
e vi os teus cabelos brancos no meio dos destroços.
Em cada cara eras tu que me dizias no pasa nada
mas eu sabia-te morta. 
       Aquele grito cantado de criança deu-me a certeza
       de ter ouvido as explosões antes da noite
que era ontem.
Porque me dizes que não há caminhos para a Paz
que a Paz é o único caminho?
Se afinal não consigo encontrar-te.




Deixaste aqui este copo com a tua boca e as tuas mãos.




Do que temos saudade não é do passado é de como nós éramos.




O sono não chega. 
Talvez de barriga para o ar me cheguem os sonhos. 
Mas não, 
a perna esquerda tem formigas. 
Talvez de lado para a direita me cheguem ideias e as esqueça. 
Mas não, 
sinto o braço direito a mais. 
Agora sobre a esquerda, talvez me esqueça da insónia. 
Mas não, 
tenho o braço esquerdo a mais. 
Pouco importa, não tenho ninguém à espera 
e eu não espero por ninguém. 
Fico aqui, os meus passos não deixaram marcas. 
Desisto, desisto
e acordo sem ter dormido.




Só via uma silhueta, a luz estava por trás. 
Como estava deitado via o recorte da figura de baixo para cima. 
Estranhamente o quarto estava escuro, só aquela luz forte me parecia um écran com o recorte da figura negra. 
Aproximou-se, julguei que me vinha beijar, mas não, tapou a minha cara, deixei de a ver embora percebesse que ainda havia luz. 
Mais tarde, muito mais tarde compreendi que tinha sido aberta a "porta" do lugar onde estava o meu corpo.




Actualizo o meu blogue. 
A seguir consulto aqueles de que gosto. 
Leio um, leio outro e ainda mais outro. 
E vejo que
                 muita solidão anda por aqui.




Decalco-me do poeta e vejo
que hoje é um dia em que há escuridão junto à terra
e caio sempre no erro de deixar que alguém toque um violoncelo, 
na verdade sou eu que lhe peço para tocar
e fico neste gosto triste de estar triste
enquanto fios de luz sobrevoam o meu lugar incerto e
Casals com as Suites que também são suas
acomoda as memórias desordenadas de como nós éramos
quando ainda tínhamos a memória curta. 
E como dizia o poeta
… escorres o passado para uma vala comum…

Homenagem ao Poeta Armando Silva Carvalho e a Pablo Casals





Diálogo no confinamento


-Vá, hoje os pais vão ajudar o "Benardo" a fazer os trabalhos da escola! 


-Sim, a mamã também ajuda! 


-Que bom, obrigado!


-Vá, diga lá o exercício que a senhora professora pediu. 


-Está bem:
"Diz qual a notícia que mais gostarias de ver publicada no jornal."


-Muito bem, a mamã acha que o "Benardo" é capaz de fazer esta!


-Vá campeão esta é fácil. 


-Não sei papá, não me lembro! 


-Vá, o papá ajuda!


-Então diz que eu escrevo. 


-Então a notícia era:

              O "Benardo" Saavedra ganhou o Euromilhões!!!





Um homem está vivo e acordado.
Pensa e compreende que lá fora à sua volta há uma guerra.
Então, levanta uma barricada dentro da sua cabeça.
Sobrevive alimentando-se do seu passado.
Cala-se palavra a palavra.
Por vezes murmura expressões novas e por isso incompreensíveis.
Os outros, os da guerra, vieram buscá-lo.
Foi feito prisioneiro,
encerraram-no numa prisão com uma cama num lugar todo branco.




Num comboio descendente
De Cascais à Cruz Quebrada
Dantes ria-me de tudo
Hoje rio-me de nada.

E em mais outro descendente
Da Cruz Quebrada à Capital
Dantes sonhava com tudo
Agora a noite é total.

Um comboio surpreendente
De Lisboa até Paris
Levou tudo na bagagem
O que ficou p’ra fazer e tudo aquilo que fiz.

Num comboio sem retorno
Do princípio ao fim da vida
Uns que dormem ser ter sono
E outros com a ceia servida.


Num comboio ascendente
Desde aqui ao fim do mundo
Vou sózinho na viagem
Tudo morreu num segundo.

Inspirado em "No comboio descendente" 
de Fernando Pessoa



Não revelarei nunca onde me estão cravados esses cravos ferrugentos.



Foto de Trovão 


Na verdade, do que eu gosto é do som dos teus passos quando chegas.






De entre todos
escolheram aquele que subiu a escada.
Este,
chegado ao cimo acenou.
Os outros,
retiraram a escada e partiram.




Um homem velho repousa finalmente repousa
 é um homem sozinho descansa com as suas feridas
 respira as suas memórias e há qualquer coisa 
 que quer entender mas as palavras são muitas
 para ainda tão pouco repouso.
 Afogam-se as memórias
 na desordem
 no remorso
 na dúvida
 na casa vazia cheia de sombra inútil.
 O homem velho reconhece nos outrora íntimos
 pessoas e lugares distantes
 sem voz
 sem passado.
 Os tectos das casas dos velhos têm manchas
 com as quais constrói mapas
 do tempo
 dos desgostos. 
 Os tectos são o céu e sob ele o homem velho repousa
 finalmente repousa.




Mesmo que a tua silhueta cujas feições se perderam
me caia no escuro dos sonhos, sempre igual, sei que és tu. 
Todas as mulheres são a mesma mulher
 e todas começam e acabam em ti. 
 Não mais do que uma vida 
em tantas viagens futuras sem sair do teu passado. 
O teu corpo agora diferente, depois de tanto caminho 
é o mesmo sendo outro. 
Recordo-te nos teus passos, ao fim de uma tarde longínqua, 
junto à margem do lago que já não existe,
a minha timidez transformada em ousadia abraçou-te com palavras, 
disseste que sim e desde logo um turbilhão
de luz escura raiou imparável.
Contigo nasceram igrejas, cemitérios, praias de promessas
como redutos da verdade que nunca sobreviveu à nova mentira.
Eu era para ti como uma ponte sobre as águas revoltas.
Não sei da tua existência, mas sei que não existes sem mim.
 Na verdade nunca exististe, senão numa concepção irreal,
 como eu, sendo aquele que te criou, também nunca existi. 
Sou hoje o que permanece à tua sombra, no negrume que agora, 
com o sol que várias vezes nasce no poente,
estende a tua silhueta sombria que perdurará 
até à chegada da primeira e única noite.
Sempre voltas, sendo tu és uma outra
com quem consumo dias do tempo que me resta.
Desde sempre desejei dormir com a cabeça no teu colo
porque a mulher nossa amante pode também ser nossa mãe.
Morrerás no dia que for escolhido
como o dia em que deixarei de vomitar
textos desirmanados e imagens desiguais.
Todas as mulheres vivem em ti, continuas em cada uma
em todas renasces em todas te confundes
em mais uma e em mais outra, até depois.
Dos vestígios que deixaste,
nem retratos, nem sombras, nem recordações
ninguém sabe quem tu foste porque afinal até eu já te esqueci
até eu já me esqueci.




Tocaram à porta,
abri.
Duas idosas estendiam-me um folheto que dizia
"Jesus espera por ti no Paraíso".
Abri a gaveta do móvel por trás de mim
tirei a minha pistola e
piedoso enviei-as para o tal sítio
onde Jesus as esperava.





Acordou
Viu duas riscas de luz na janela
era dia.
Ao longe ouviu um casal falando alto e uma criança a chorar,
muito ao longe os automóveis buzinavam,
mais perto uma motorizada matraqueava o silêncio.
Ao lado viu os números luminosos, verdes
13.00
Só receberia a sua pensão de reforma depois de amanhã.
Tapou a cabeça
e deixou-se morrer… 
… por mais dois dias.