Foto de Daniel Filipe Rodrigues



O tempo corre a teu favor


Surpreendi-me com esse teu olhar

com esses teus gestos

com a sabedoria com que podas

as excrescências dos meus dias 

como sabes contornar a razão 

e fazer com que tudo fique imóvel 

e depois tudo agitas

como se isso fosse o início 

e nada tivesse estado quieto


ignoras que noutros tempos

fui soldado ferido sem combate

fui o gato da minha infância 

fui um barco quase perdido

fui um livro com várias folhas soltas

e esse teu olhar nada reconhece

vi em ti tudo aquilo que fui antes

já não posso enganar-te mais

o tempo corre a teu favor.



 

Foto de Ana Luís Rodrigues



O poeta talvez já tenha partido


O poeta devora as suas próprias crias 

mas arrepende-se 

o poeta teme a morte

por isso dá à luz algumas palavras 

mas em vão 

o poeta na ressaca da madrugada

vomita lugares comuns inférteis 

o poeta deixa que todos partam

e escreve sobre a solidão 

coisas que ninguém lê 


daí lhe nasce a necessidade de tentar

transformar o caos em criação 

transformar o cansaço em motivação 

transformar a preguiça em estímulo 

o poeta após várias e empenhadas tentativas

sem comer nem dormir

sentiu o seu hálito na sua mão 

posta em concha na frente da boca

e achou que também 

já tinha partido como os outros.



 





Diálogo com um solitário 




Que fazes nos teus tempos livres? 


Escrevo, faço desenhos, ouço música, leio. 


E para além disso o que fazes mais? 


Choro. 


Em que altura dos dias? 


À noite sentado no escuro. 


Na sala ou no quarto? 


Dentro da minha cabeça.







 

Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Confusão entre o desejo e a realidade 


Disseram-nos que tinham morrido

mas como eles ainda respiram

disseram-nos que eles iam morrer


como se pudessem também 

enganar a morte ___ como se esta 

matasse os justos

e não os mentirosos.





Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Ali não viveu ninguém 


No teu olhar a vida toda

o abandono mas também o pânico 

o silêncio fala quando

as tuas mãos adormecem

no princípio do teu ventre 

e dizem que ali não viveu ninguém 

por isso ninguém te espera

nem aqui nem noutro lugar

a luz e as paredes brancas

são apenas escuridão 

e o chão frio onde pões os pés 

eleva-te por já seres um anjo

resignado

como tudo seria diferente 

com o riso vibrante de uma criança.







Somos tudo o que soubemos 

ou fomos capazes de ser 

durante o tempo possível 


sem que fosse imaginável saber 

quando esse tempo acabaria


por vezes tudo é tão rápido 

que nem tomarmos consciência 

do que não fomos capazes.





Foto de Bartolomeu Rodrigues



Estou feliz hoje


Fico com o ânimo abafado

sob uma luz ténue 

com música lenta

com vozes lentas sem palavras 

estranho a vida em que há sossego

e em que ser saudável 

é não haver ruído dos órgãos 

é o que me dizem

estranho é que me engano nas sílabas 

e depois rio-me

para disfarçar o medo


começo sempre o dia

como se fosse novo

para disfarçar o tempo

estou feliz hoje

tenho ao meu colo

o gato da minha infância.





 

Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Ausências 

As ausências são a presença 

dos nossos nadas

espero em tudo acreditando 

numa voz colada ao ouvido

nos silêncios 

nos desenhos parvos que vou fazendo

na capa do caderno

enquanto gastamos o saldo inutilmente

em silêncios 

sonho-lhe os seios 

que tomarei na primeira oportunidade

mesmo que fique com a boca a sangrar

é de sangue que ela gosta 

é por isso que gasto inutilmente o saldo

nesta ausência presente no meu nada

e faço desenhos parvos na capa do caderno

digo

        não te olvido

sem resposta

adormeço entre as páginas de um livro

e retorno ao útero da minha mãe.



 

Foto de Louise Clausen



Poema de amor lamechas

uma vez sem exemplo 


Falo de um amor 

que já não existe

afinal

já era um amor solitário 

uma ausência de minutos

durante anos

terminou em minutos

com troca de lágrimas 

antes só 

do que desacompanhado.



 

Foto antiga de autor desconhecido



Pai ___ vi-te morrer


Vi-te morrer três vezes 

de todas voltaste 

pronto para morrer outra vez

em cada morte a tristeza ensinava-me 

a não te levar a sério  

mesmo que houvesse lágrimas 

e a mãe tirasse o vestido preto do armário 


depois trocava-o pelo vermelho ___ 

___ o teu preferido 

tudo preparado para a tua ida

tudo preparado para o teu regresso

aprendi que morrias como se nasce

talvez até com mais facilidade

e renascias com mais júbilo 


tu dizias não há duas sem três

mas

à quarta foi definitivo 

embora nem tu estivesses a acreditar

porque disseste 

que grande tontura que me está a dar

e ao sentares-te espiraste cansado


sentaste-te como se fosse

para deixar passar o tempo

necessário para o regresso

mas não regressaste

pela primeira vez além de morto

ficaste frio como uma pedra

para voltar à terra


vi-te morrer três vezes 

até morreres.