Foto do autor do texto



Criança 
Prado
Melodia
Céu 
Futuro
Sossego
escrevo algumas palavras certas
e destas nascem outras
felizes inventos da língua 
de quando era o princípio 
e não existiam palavras infelizes

escrevo sentado na cadeira do tempo
sabe-me a boca a sândalo de dia
e a canela de noite 
escrevo palavras certas e felizes
há um eco que repete as palavras
por isso me algemaram 
mas não me arrependo do poema.


 




Encontro no meu lugar de sempre
uma mulher
uma silhueta sombra de um desejo antigo 
um desenho no lençol branco da espera

e faço do desejo um acto
como uma corrida pela planície 
como em outubro desejar agosto 
como ter encontrado uma definição para tudo

sempre com medo de errar
escrevo-lhe um poema com as mãos 
sobre aquela beleza inesperada e tranquila 
como um invento de uma língua nova

o poema começa e acaba assim
Se o teu sorriso fosse a pintura da tua boca
fazia-te um poema com palavras novas
porque a poesia é uma coisa muito séria.


Foto do autor do texto



É ali que fico
numa mesa do café antigo 
como se fosse o lugar
onde o meu espírito vive
contemplando o mundo 
nessa mesa os mapas inteiros
de países imaginários que deixaram 
os que passaram por ali
círculos de café 
impressões digitais
sons impressos
lamentos
revoltas
despedidas
é ali que fico
numa forma de não estar só 
até que se apaguem as luzes.


 


Foto do autor do texto



Já estive exilado várias vezes
dentro do meu próprio exílio 
de vez em quando largo-me por aí fora
num barco de papel que eu próprio faço 
mas não vou longe
passo de um lado para o outro
do lago do jardim da cidade
divirto as crianças mas irrito o guarda
quando vê cisnes assustados a esvoaçarem 
acabo com água pelo joelho
mas interrompo o exílio dentro do meu exílio 

nunca chegas para me salvar do ridículo 
ou talvez seja por isso que nunca chegas. 

 


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Fernando Guimarães


1928 - 2025


IA



O homem inventou-se a si próprio 
num elaborado impulso criador
inventou Adão 
num criativo desígnio 
inventou Eva

Adão caminha 
ignorando para onde
com a parra sobre os olhos
impedido de contemplar 
a beleza de Eva. 



Foto de Torre de Babel



Se disseres 

nasci! 


passam-te creme no corpo

e avisam-te do lugar que é o mundo


pegam-te ao colo

e dão-te uma bolacha


dão-te um nome 

e passas a ser um número


ensinam-te palavras

e dão-te uma rede para caçar borboletas 


ensinam-te a falar

mas certas falas em voz baixa 


dizem-te que és a infância 

mas perdes o direito ao colo


mostram-te um rio

para te distraírem do céu 


e tu dizes

nasci! ___ nasci! ___ nasci! 

então 

põem um réptil à tua porta

que deves alimentar


muitos anos depois

ao veres as fotos do passado

dizes

ninguém muda a minha natureza

e com força de vontade

deixas de respirar.



 



Já há um estranho cheiro a cera

no interior da minha casa

o meu projecto foi uma casa de barro

para que um dia esta terra

seja uma irrecuperável ruína 

para que depois de mim a casa

não sirva a mais ninguém 

e se desfaça sob a chuva diluviana

do meu último dia


já há um estranho cheiro a cera

as velas já estão acesas

alguém adiantou o destino erradamente 

fico em vigília fora do tempo

impaciente o lume lavra o projecto

porque já é o fim da história 

começa a chover sobre a minha casa

o que prova que sendo o fim do tempo

ainda não é tarde


renasço aqui __ ali ___ em qualquer lugar. 


 

 

Foto do autor do texto


Da minha estante caem
palavras e letras em cascata
caem as palavras erradas ou então 
é a escolha das palavras magníficas 
que quando tocam o chão se diluem
com um ligeiro fogacho
de todas sobra uma ou outra luminosa
desse mistério da fala
que copio com o meu lápis 
escondido entre um tronco de cedro
reparo então 
que se constroi uma poesia
com palavras ao acaso
sendo que o primeiro verso

O pão que se come nas trevas

abriu o meu ser sentimental
como um arado a lavrar a terra seca

apago a luz
e fico a ver o borbulhar luminoso
das palavras sem poesia.




IA



Uma casa 
com dia de um lado e noite do outro lado

o medo de no meu corpo
ser dia e noite ao mesmo tempo

um choro de criança do outro lado da luz
ou da sombra
e a dúvida no socorro

o gato que foge do dia para a noite
e da noite para o dia
o miado ao longe

um bater de asas animal 
pombo ou morcego
não há vestígio de penas

passos de mulher que sai do dia
ou entra na noite
ficou o perfume

uma grande nuvem que suspende o dia
ou se perde na noite

há-de haver um lugar 
talvez numa parte do mundo não descoberta
em que todas as coisas recomeçam 
em que no fim do dia recomeça a noite
e a seguir recomeça o dia
numa sucessão natural
que vem do início dos tempos

alguém dentro de mim ou eu próprio pergunta
por que tem de haver noite
a toldar a inocência dos pobres? 
nada sei sobre a certeza ___ a razão 
sei apenas que virá o dia da agonia
e que tudo acabará do lado da noite. 

 


 

Foto do autor do texto



Na despedida te digo
depois 
da desestima
do desprezo
do doesto

eu fui ficando
mas agora vou-me embora
deixo-te acompanhada
com os teus remorsos

não preciso de padre nem de flores. 




Foto do autor do texto 



Pode não significar nada que eu te diga 
meu amor! 
mas se eu preciso de amor e tenho de amar alguém 
peço licença para que sejas tu
não precisas de responder
não precisas de retribuir
só precisas de te deixar amar
e assim de mim para mim amarei
as tuas palavras graves já ditas que guardei
as tuas ideias sobre todas as coisas que foram
a tua ilusão inútil pela não sucessão da vida
e tu ficarás 
na tua solidão escondida e pesada que mereces

eu fico a gritar e a responder a mim próprio
se és corajoso finge!




Foto de Daniel Filipe Rodrigues



É sempre um momento de felicidade
quando passeias o teu corpo pelas minhas mãos 
vejo que conheces todos os caminhos
e que talvez continues a gostar da paisagem
porque sempre voltas

a vida está cheia de absurdos impossíveis 
que à primeira vista nem parecem absurdos
quer dizer
existo para ti como paisagem e floresço 
subindo pelo teu perfume até à tua compreensão 
renovando as montanhas e os vales do meu corpo 
para que haja alguma novidade em mim.