Foto do autor do texto



A semente humana
em busca do céu 
germina num oceano branco
e respira. 







Sou um poeta em dificuldades 
já não encontro as palavras 
já não encontro as ideias 
que vêm escritas nas palavras 

acabou a música e o sol baixou de mais 
os rumores dos outros acordam-me 
deste esgotamento criativo

hoje foi o primeiro dia depois do último 
acabou o dia acabou a poesia 
vou pensar no que farei ao que ficou
no teu lugar ficará uma flor. 


 


Foto de Bartolomeu Rodrigues (fracção)



Concebi um pássaro 
com as penas do meu coração 
escrevi uma aventura
com as letras dos nossos nomes
construi uma casa
com o papel das tuas cartas

cansado de tanta poesia ___ 
___ adormeci
morreu a madrugada
enquanto eu dormia.


 





Escrevo nas margens da folha
que deixo em branco
onde desenho uma casa
para te acolher

Olho para o céu e digo
     em que lugar do céu te encontras
     que tenho precisado tanto de ti? 


 


Foto do autor do texto 


Nesta marcha te sigo e te alcanço 
com a liberdade de caminhar sem fim
não sendo de lugar nenhum
caminho mil passos
sobre mil passos
e nesta marcha te sigo e te alcanço 
até ser de algum lugar
e marchar de braço dado contigo. 







Morrerei num comboio
farei uma viagem longa
e deixar-me-ei morrer 
junto a desconhecidos
não quero ser reconhecido ___ velho

os meus encontrarão 
na gaveta da minha mesa de trabalho 
a minha face em novo num retrato
e mil e quinhentos poemas

estarei ausente
durante muitos anos
quando eu regressar
já os meus não existirão. 


 



IA


Um homem está deitado na sua cama branca
o homem sente-se um ponto no meio do universo
a sua cama é uma planície encerrada
numa cadeia de montanhas de onde se sai
por uma porta que está agora encostada
lá fora dentro de casa há vozes 
de mulher 
e de criança 
como fumos roçando as paredes
a janela do seu quarto poderia ser
a janela de um comboio por onde veria passar
céu 
aves
campos
montes
árvores 
rios
por detrás das cortinas fica o mundo dos outros
o homem deitado na sua cama branca
e emparedado no seu mundo
pensa
o que fará com tudo o que ficou 
sobretudo com o Mustang que encontrou na garagem.




 

Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Tenho os pés molhados
hoje foi um dia em que choveu muito
tenho frio na cabeça 
tem-me caído muito cabelo
tenho dores nas mãos 
há uns tempos que tenho os dedos rígidos 
tenho maus pensamentos à noite
há muito tempo que durmo sozinho 

um homem feliz
tem os pés secos
tem um bonito penteado
tem as mãos ágeis 
e partilha o seu sono. 


 




Acalmo o meu coração 
falo com ele serenamente
sobre o seu susto
quando bate forte
digo-lhe que eu 
é que sou o coração dele
e que ele baterá 
até eu querer
ele diz que
eu sou apenas a COR
e ele é a AÇÃO
e isso é que o assusta
 
digo ao meu coração 
vamos descansar juntos
e apago a luz. 


 


 

 IA CANVA



Quando te tomo num apelo sensual
aumenta a ternura
na medida em que se reduz 
a capacidade do corpo
e assim nos juntamos 
em equilíbrio alternado
como num baloiço horizontal
num jardim da nossa infância 

e regressamos a nós próprios 
um no outro.


 


Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Só faço poesia descalço 
quero nos meus poemas
a marca dos passos que dou
como se as palavras fossem areia
de uma praia prometida
igual à da minha infância 
caminho junto à rebentação do poema 
que tenta salvar-se em espuma
que o mar há-de levar junto
com a marca dos meus passos.


 


Foto do autor do texto 




Cheguei tarde
eu sei
reconheço o desequilíbrio 
entre as minhas qualidades 
e os meus defeitos
cheguei tarde
eu sei
mas merecia mais
do que terem-me deixado
um pão rasgado sobre a mesa.


 



Foto da revista Superinteressante




É vertiginosa a velocidade
com que nos crescem os ossos
logo seremos capazes
de descer da nossa cama
subir a uma cadeira 
chegar à prateleira dos doces

depois
é desfolhar um calendário 
manter o equilíbrio 
e tentar
desvendar o mistério da montanha
antes que os ossos
comecem a decrescer.



 




Nem Deus nem o Diabo
nem riqueza nem pobreza
nem prazer nem dolor
mas
como é fastidioso o lugar comum.




Foto do autor do texto



Entrei na Cafetaria Moderna
sentei-me para escrever 
um poema triste 
que estava a nascer
e que começava assim
     A poesia é o calor do corpo

mas em vez do poema decidi
enviar-te um postal com o meu 
compromisso
mesmo que partas prometo
que tratarei do teu gato 
e não lhe direi que partiste. 
 

 



Foto de Ana Luís Rodrigues



Espero à sombra de uma árvore 
que também espera

digo-lhe
     tudo demora
o sangue e a seiva
correm por dentro
dos braços e dos ramos
     tudo demora
os frutos virão do fundo da terra
sombras e sombras depois

dessa espera virá um primeiro fruto
e depois
um poema que digo em voz alta.


 




Tenho pouca memória da minha memória 
tudo o que é perto me parece longínquo 
de tudo o que foi ___ descreio que foi
acordo com desejo e não me esqueci de quê 
sei de onde vim e regresso à origem.



 

Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Caiu um pouco de sol no meu jardim 
colhi-o com precaução 
usando uma colher com o cabo revestido
entornei-o para um frasco de vidro 
resistente a alta temperatura

ilumino a minha mesa de trabalho
e à sombra deste sol
tento compreender o mundo. 


 


Também usei a IA




Querer fazer amor contigo
é como em tempo de guerra
querer ir jantar ao restaurante
que fica do outro lado da cidade 
que está ocupada pelo exército inimigo.



 

Foto de Bartolomeu Rodrigues



Na cidade
todos os prédios são iguais
e há ameaças todos os dias
a cidade é pequena como uma aldeia
todos os homens e mulheres
têm nomes começados pela letra A
que se repetem e repetem 
mas com números tal como
as matrículas de automóveis 
quando eles existiam
na cidade já não há crentes
as igrejas estão vazias e muitas 
foram adaptadas a maternidades
onde os nascituros são registados
com nomes começados pela letra A
mas com números adicionados
tal como as matrículas de automóveis 
quando eles existiam
na cidade 
cada um trabalha e sobrevive 
no prédio onde mora
sem necessidade de se deslocar
por isso não há confusão com os nomes
eles têm o número do edifício 
e do andar onde habitam

um dia chegaram à cidade
pedestres de uma outra cidade
com nomes começados pela letra B
em tudo iguais aos da cidade A
chamavam-se por nomes diferentes 
eram fugitivos 
e encheram as ruas da cidade.