Foto do autor do texto


Digo-te
que nas minhas veias corre 
o que resulta da reacção química 
entre o aroma da tua pele
e o perfume do outono

digo-te
que já não é sangue
o que verte depois do golpe fatídico 

é apenas fantasia. 




Foto do autor do texto



Estou com dificuldade
em encontrar a passagem

calço os sapatos ao contrário 
e assim contrario 
a tendência que tenho

para fazer caminhos lineares.




Foto do autor do texto



Encerrei a porta e as janelas da minha casa
pela primeira vez não sei se volto
reconheço que estou em fuga ___ ficam
as minhas sombras
as minhas palavras 
ecos de gritos
choros e risos de crianças 
retirei todos os quadros das paredes
e cobri de panos brancos 
os móveis sem vida
os meus partiram há muito
a tristeza é uma casa em silêncio 
e deixar de viver não é apenas 
deixar de respirar
morrer é o pó em tudo
a roupa amarrotada
chá ao jantar e ao amanhecer
os braços pendidos
o passado já não existe
e no presente não há ninguém  
 
 parto em fuga para me reencontrar
com um novo nome ___ assobiando   
as malas afinal são leves.


 


Foto do autor do texto



A nave encalhou
na única ilha de um imenso mar
um lugar escuro 
e ignorado em todos os mapas
só um corvo me recebe
há um perfume que reconheço 
já estiveste aqui.




Foto de Daniel Filipe Rodrigues 



Torna-te firme minha amarra
para que me salves 
não quero morrer no mar
não quero morrer na terra
pior do que tudo
é se morrer na tua memória
torna-te firme minha amarra
que tenho no casco
uma brecha fatal
amarra-me no teu cais 
e toma para ti
o meu último suspiro
que me afundo.



 

Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Cinquenta Abris


Trago no bolso um cravo

e na boca uma revolução 

se agredirem a minha liberdade

saco do cravo

carregado de vermelho e perfume

e disparo as minhas convicções 

de Abril adulto

     cinquenta mais cinquenta

     de Abris para sempre! 

gritarei antes de ser atingido.




Republicação neste dia de reafirmação de Abril.





Foto de Daniel Filipe Rodrigues 


O passado existiu


Não olhes para trás 

quando à tua frente houver escuridão 

de nada vale

o teu futuro será sempre

o contentor do teu passado.





Foto do autor do texto



Voltei a casa na certeza
de que tudo estava
como eu deixei

abri a porta
e estava de novo
no outro lado da vida. 




Foto de Daniel Filipe Rodrigues 


 

Estamos todos no cais
na hora que nos resta
de uma tarde nimbada de saudade
falaremos dos que ficaram
e das nossas dúvidas sobre
a saúde dos que não quiseram vir
falaremos das suas casas
das suas searas
e do vento que as ondula 
falaremos dos filhos 
estrangeiros noutras terras
na facilidade do seu canto
cujo som nos chega retardado
falaremos em
sacrifício 
abdicação
abandono
desencanto
e em tudo o que nos trouxe ao cais
aqui ficaremos sentados
sobre o resto do que nos resta
até o bolor dar cor à nossa bagagem
e significado à nossa espera

assim nos salvaremos da eternidade
e na última hora vibraremos
numa ruidosa espera profana.



Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Morri em Florença dentro dos teus sapatos 
gravei antes com a minha voz a tua canção de dormir
conservei acesa a luz da lua no nosso quarto
fiquei sozinho com a paisagem nos olhos
fiz um poema com o resto do meu sangue
depois o mundo morreu também. 


 


Foto de Daniel Filipe Rodrigues



A violinista

Cabelo curto a envolver
a beleza do grande talento
braços firmes em arco
convergentes na descoberta dos sons
mão esquerda tremendo nas cordas
marcando o tempo da minha emoção 
peito equilibrado na dimensão certa
da minha respiração 
costas verticais sem apoio
refletindo os sons que me alcançam 
ao meu chamamento

ou fui eu que respondi
fiquei-me na contemplação 
do som da tua imagem
que é uma parte da verdade
a outra parte é o que eu penso. 








Fica longe a minha cidade 
à beira-mar
onde um inútil farol brilha e ruge
aqui é noite durante o dia
e o exílio 
fica em outro meridiano da alma
que nenhum farol orienta. 








Sou mais fraco do que tu
o meu coração tem dores 
quando ouve certas palavras
ele tem medo de deixar de bater 
por ti.




 

Foto do autor do texto



Voltaram a ser virgens as minhas mãos 
ficaram sem memória 
já não têm corpos por entre os dedos.





Foto de Ana Luís Rodrigues



Chamo-te na infeliz ideia
de que ainda estás aí 
na irreal ideia
de que ainda resistes
que lugar desconhecido
estarás a descobrir ___ agora 

aqui estão as cores do vitral
que se projecta nas lajes que pisaste
e um órgão lento
preenche o silêncio vago
na sombra dos mármores 
inscrições ilegíveis 
nomes
datas
versos de cânticos 
frases de arrependimento 
na escuridão cabelos tangem
o meu rosto num momento breve

depois disto haverá decerto
um grande mar
onde o céu se liga à terra
irei até onde o sol me deixar
e tudo será passado.






Reconheço-te na justiça do tempo
que desenhou o inverno na tua boca
com a justiça que o tempo
sempre tem sobre os que mentem

reconheço-te na mentira do cabelo
que continua negro
quando o branco é a verdade
porque vives já noutro século 

reconheço-te na mentira usual
dos que mentem pelo tempo fora
quando tentam ignorar o passado
mentindo a si próprios 

reconheço-te vinda de uma ilha
com a cor expressa no rosto
e palavras diferentes deslumbrantes
que nenhuma mentira pode negar

reconheço-te quando mentes 
que não me reconheces
para não denunciares uma mentira antiga
que ambos sabemos que foi verdade

um mentiroso é uma ínsula 
a afastar-se de si próprio 
com a memória amordaçada.



Foto do autor do texto



Pouco importa que o trabalho poético 
faça desabar as lágrimas 
que trazemos na vontade oprimida 
sem nunca fazerem o caminho natural
face abaixo em direcção à boca

pouco importa que tudo se desenvolva
em palavras e mais palavras 
e que o poema se revele
nostálgico 
revolucionário 
resignado
violento
não mudará as feições do mundo
não levará a luz às minas
não acalmará os mares 
não tornará fértil a terra

a poesia faz-se para iludir os poetas
a poesia existe para ser ignorada. 


 


Foto do autor do texto tomada do canal Mezzo



Chegas obscura 
carregada de tempo e de odores antigos
cerro os olhos e tombo a cabeça para trás 
não há regressos ao passado
adormeço ___ ou morro por instantes.







As partidas são a interrupção 
do decurso normal das nossas vidas

como me incomoda o som
do vai-e-vem do elevador que passa 
lentamente pelo piso do apartamento 
sempre fico ansioso esperando que pare
quando me ignora digo
Paris Paris Paris
para te influenciar lá longe
e acendo mais um cigarro
antes da tua memória se consumir
no meu sangue em chamas
como o meu Gitanes se consome
tanto que já não existe mais  
 
um Gitanes e a noite
ensinam-me a solidão 
e o elevador que não pára! 


 


 



Lorca

De nada te serviu o nome
o teu destino em nada foi diferente 
dos que também foram homenageados
de encontro aos muros brancos
com balas iguais às que guardaste 
no teu peito inflado de poesia
o nome foi a tua culpa
de nada te serviu seres poeta
a poesia não apazigua corações 
calejados pela ausência 
de lágrimas 
de apelos
de rogos
com fogo rasuraram as palavras 
que trazias tatuadas na alma
dobraste os joelhos
e sorriste para a terra
antes de a beijares 
 
continuas vivo por sobre
os que te mataram
marcaste-os com dois claveles


Lorca

El nombre no te sirvió de nada
tu destino no fue diferente
de los que también fueron honrados
contra paredes blancas
con balas como las que salvaste
en tu pecho hinchado de poesía
el nombre era tu culpa
no valía la pena ser poeta
la poesía no alivia los corazones
encallecidos por la ausencia
de lágrimas
de súplicas
de oraciones
con fuego borraron las palabras
que habías tatuado en tu alma
doblaste las rodillas
y sonreías a la tierra
antes de besarla
 
sigues vivo
los que te mataron
los marcaste con dos claveles.