Este ano velho está doente
doença crónica com febre e convulsões 
em vários lugares da sua identidade 
temporal e geográfica 
este ano nunca foi saudável 
em todo o seu corpo
o seu tempo e lugar foram 
os próprios homens e mulheres 
que o construíram e o desconstruiram

venha o novo ano
portador das mesmas doenças 
com o mesmo sangue infectado
o meu ano virá agora
dentro dos dias silenciosos
que desembrulharei um a um
como guloseimas sem alternativa 
até ficar sem dentes.







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Adília Lopes 1960 - 2024
Foto (excerto) do Diário de Notícias 



 

Foto do autor do texto tomada do documentário VIDA SELVAGEM



Naquele jantar de amigos de infância 
muitos anos passados
já eram todos adultos
disseram tudo o que quiseram
e eu já não os reconhecia ___
___ utilizei o guardanapo para 
deixar lá ficar o que tinha para dizer.




Foto de Daniel Filipe Rodrigues


Estou na parte movediça 
da melancolia 
estou assim
faz muito tempo
nem me salvo
nem me afogo. 




Foto do autor do texto

 

Este é o labor de quem usa as palavras 
a quem faltam palavras 
na ordem que elas necessitam 
para se deixarem usar
muitas permanecem escondidas 
e apenas surgem no escuro
quando estou a tentar dormir 
elas descem da cabeceira da cama
pingando sobre a minha cabeça 
retenho-as então na memória 
meio adormecida 

no dia seguinte
sob a ferrugem da memória já acordada 
não há nada
são rebeldes as palavras 
e não dormem connosco.


 



Foto do autor do texto



Como te chamas? 
     Manuel
que fazes? 
     sou escritor
     militante
     pintor
     ensaísta
voltaste? 
     não ___ tu é que me imaginas aqui
és só Manuel? 
     na verdade não sou só Manuel
como te conhecem? 
     também por Tiago 
já sei que te conheço mas com outro nome
     confirmo mas estou clandestino
obrigado por teres vindo e teres ficado. 

Homenagem





Foto do autor do texto tomada do canal Mezzo


De tudo seremos despojados
do silêncio que julgávamos nosso
   ao menos isso
do peixe sobre o pão 
   ao menos isso
do calor no nosso colo
   ao menos isso
de uma canção ao fim da tarde
   ao menos isso
da água a correr nas mãos 
   ao menos isso
direito ao corpo num lugar qualquer 
   ao menos isso

de tudo seremos despojados
cá por mim
que não sei como hei-de terminar o poema
fujo 
com a minha dançarina de flamenco
ao menos isso.






Foto de Daniel Filipe Rodrigues


Uma rola pousou
no parapeito da minha janela
olhámo-nos
pensei
é uma falha da natureza
que não saibamos voar.





Luz ___ sombra
calor ___ frio
vozes ___ silêncio 
sossego ___ pânico 
ternura ___ violência 

cânticos ___ cânticos 
Deus ___ Deus

o Natal
de uns ___ e de outros.



Fotos de Freep!c



Foto do autor do texto



Duas colheres de café em pó 
meio púcaro de água a ferver
uma janela imóvel em frente
uma ameaça nos clarões 
que se vêem no horizonte
preciso
do conforto de um café quente 
quando quero ficar no escuro
para não ser descoberto. 


 


Foto do autor do texto sobre um trabalho de Lothar Baumgarten



Há algo de absurdo na vida
é o que penso quando penso em mim
mas pensar em mim
é a única forma de me salvar
só assim o absurdo fará sentido
e até a morte fará sentido.




Mona Lisa (excerto)



Foi uma noite dividida 
entre
o sexo
e
o nexo
entre
o desejo
e
o bocejo 

mas 
o sangue 
a pele
deitaram-se
sobre as 
palavras 
a razão 

foi a tua boca 
em silêncio 
que decidiu
como fazer 
o poema.



Foto de Daniel Filipe Rodrigues

 

Cada vez que me abandonas
fico amputado
já me levaste
três dedos da mão direita
toda a mão esquerda 
e parte do pé direito

afasto-me então 
antes que seja degolado
ou não me possa escapar.


 


Foto do autor do texto



A tudo ponho novos nomes
e guardo as palavras antigas
para poder
falar contigo como dantes.




Foto do autor do texto



Se tivéssemos a nossa vida revista e aumentada
penso
seria a grande possibilidade de termos 
influência na melhoria do mundo

pensemos nas consequências 
de rever a nossa vida e aumentá-la.




Foto de Daniel Filipe Rodrigues



No princípio o meu céu e a minha terra 
estavam sem ordem e eu estava sozinho 
comprei um peixe vermelho
para me fazer companhia

nesse vazio projectei um museu
para que existisse ordem e luz sobre 
os acontecimentos do século passado
da minha longa vida
a luz escondia-se entre
os papéis manchados com palavras 
e dobrados de esquecimento 

com zelo e surpresa foram justapostos
sobre o meu estremecimento 
ainda não tinha nome para o que
me ia surpreendendo o lepisma comeu
todos os nomes escritos 
em cartas 
em postais
no verso das fotografias 

a todos dei então novos nomes
com palavras de que gosto
e entre eles os liguei com
artigos definidos
e indefinidos
preposições 
vírgulas 
e outros complexos artifícios da língua 

e eis o museu 
de que sou o único visitante 
finda a tarefa encerro as portas 
e vou tirar o peixe vermelho da água 
antes que se afogue.

 



Foto do autor do texto


Compreendo hoje
que não podias ficar comigo
dos vinte aos setenta
como se tudo fosse natural
durante meio século 

teres de escalar este coração íngreme 
nadar sozinha num rio revolto
posar nua dia sim dia não 
manteres sempre a verdade nas tuas mãos 
ficarmos ao colo um do outro cem anos
vivermos cem anos sob a mesma bandeira 
saberes que a tua ilha tinha deixado de existir
e fazermos poesia no lugar dito por Breton

compreendo hoje
que não podias ficar comigo
dos vinte aos setenta
como se tudo fosse natural
que cansaço 
até eu sinto a dificuldade de estar comigo
dos vinte aos setenta.




Foto de Daniel Filipe Rodrigues



O búzio da minha infância 
ainda tem todo o mar dentro
mas 
ninguém acredita.







Um cão ladra nas minhas
costas 
o cão sem açaime persegue-me com
insistência 
o cão do desejo
abocanha-me
sangro de vários lugares do
corpo
e a dor demora a dor do
desejo
são dentes de cão cravados nos
sentimentos
o prazer não é apenas tomar o
outro
o prazer é também desejar o
outro
desejar
desejar. 




Fracção da fotografia "O beijo" de Robert Doisneau



Poderia ter sido teu amante
se quisesse respirar o mesmo ar que tu
se quisesse o teu sangue no meu pulsar
se o meu futuro fosse a história da tua história 
se no dilúvio me afogasse para te salvar
poderia ter sido teu amante
colando o teu nome sobre o meu

na verdade nunca soube quem eras
e na dúvida 
respiro o meu ar
pulso com o meu sangue
o meu futuro será a minha história 
salvei-me do dilúvio 

um dia talvez chegues e eu te reconheça 
e serei teu amante
colando o meu nome sobre o teu. 


 


Foto do autor do texto tomada do documentário VIDA SELVAGEM



O riso que trouxe da infância 
o alegre riso de dentes novos 
é agora o sorriso da melancolia 
dos dentes velhos entre o riso 
alegre e o riso melancólico 
há um ror de poemas por escrever 
caídos pelo caminho
é com estes dentes 
que mastigo as palavras
como se tudo em mim
continuasse infantil.


 


Foto de Daniel Filipe Rodrigues


Como se fosse uma palavra incerta
numa carta escrita há muito
entre a incerteza e o assombro
como se fosse uma carta
portadora da tua memória 
do teu passado
onde encontraste o refúgio 
incerto como a tal palavra
como se fosse um lugar inamovível 
e de certezas
um lugar mais alto
de onde a queda será mais grave

por muito que escrevas
não evitas a palavra 
abandono.


 

Foto do autor do texto



Meço-me no comprimento da minha sombra
nuns dias cresço 
noutros dias decresço

ou será o sol que me interpela
que me avalia? 

de noite não existo.