Foto de Daniel Filipe Rodrigues



No princípio o meu céu e a minha terra 
estavam sem ordem e eu estava sozinho 
comprei um peixe vermelho
para me fazer companhia

nesse vazio projectei um museu
para que existisse ordem e luz sobre 
os acontecimentos do século passado
da minha longa vida
a luz escondia-se entre
os papéis manchados com palavras 
e dobrados de esquecimento 

com zelo e surpresa foram justapostos
sobre o meu estremecimento 
ainda não tinha nome para o que
me ia surpreendendo o lepisma comeu
todos os nomes escritos 
em cartas 
em postais
no verso das fotografias 

a todos dei então novos nomes
com palavras de que gosto
e entre eles os liguei com
artigos definidos
e indefinidos
preposições 
vírgulas 
e outros complexos artifícios da língua 

e eis o museu 
de que sou o único visitante 
finda a tarefa encerro as portas 
e vou tirar o peixe vermelho da água 
antes que se afogue.

 



10 comentários:

  1. Fica-se impotente perante a inércia...
    Beijos e abraços
    Marta

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    1. A inércia, quando não exagerada, somos nós a descansar.
      Um abraço.

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  2. Li e reli e não percebi este teu poema o que peço desculpa!
    Beijocas e um bom dia

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    1. Nada a desculpar. Por vezes nem eu me compreendo, os leitores com os seus comentários ajudam-me a compreender-me.
      Um abraço.

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  3. Pois eu vi-o muito claramente a cerzir as peças que o lepisma danificou, L., não tivesse eu também uma cidade/museu dentro de mim.

    Quanto à imagem da carpa vermelha, pode nem sequer sequer representar um peixe. Assim sendo, convém retirá-lo da água e devolvê.lo à sua dimensão. Não resisti a roubar-lhe a fotografia...

    Um forte abraço, L.

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    1. Afinal há mais quem traga um museu dentro de nós.
      Pode levar a foto.
      Um abraço.

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  4. Boa noite Luís,
    Outro poema magnífico e comovente.
    O museu que guarda dentro de si é decerto a história da sua vida, a cujos capitulos deu novos nomes.
    Desta forma sentir-se-à mais acompanhado e liberta o peixe para que ambos possam respirar.
    Beijinhos,
    Emília

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    1. Todos transportamos o nosso museu, por vezes sem darmos conta disso.
      Um abraço.

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  5. © Piedade Araújo Sol (Pity) deixou um novo comentário na mensagem "":

    Boa tarde Caro Pintor, Poeta e Fotógrafo

    Um poema inusitado e repleto de camadas:
    Este poema é uma viagem surreal pela tentativa de dar ordem ao caos – um tema profundamente humano. A solidão inicial e o peixe vermelho como companheiro são metáforas que sinalizam a fragilidade e a busca por sentido. O museu, projectado para trazer luz aos eventos do passado, torna-se um espaço onde a memória se organiza, mas também se desintegra, corroída pelo lepisma que devora nomes e histórias.
    A reconstrução dessa memória com "palavras de que gosto" sugere uma reescrita da própria identidade, um gesto de criação que é tanto pessoal quanto artístico. No entanto, o final desconcerta: ao tirar o peixe da água, o eu lírico subverte a lógica, talvez indicando que, no universo do absurdo, nem mesmo o ato criativo pode escapar da finitude. Este é um poema que desafia tanto a lógica quanto o leitor, revelando o poder das palavras como ferramenta de ordem e caos simultaneamente.
    Espero ter desintricado o âmago do poema.
    :)

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    1. Gostei muito da sua análise, gostei de tudo o que disse. Até a mim me ajudou a compreender melhor o que deixei escrito.
      Obrigado.
      Um abraço.

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