Porto



Estavam todos à mesa
eram uma família feliz. 
Disse o pai para a sua direita:
-Alcança-me aí um desgosto! 
Disse o pai para a sua esquerda:
-Passa-me aí um remorso, 
vou-vos provar a todos que já nada me faz chorar! 
Todos se levantaram e todos choraram, 
depois todos se sentaram. 
O pai mastigou o seu desgosto
engoliu o seu remorso, 
levantou-se e saiu.
Até hoje. 
É disso que se alimenta. 





Salamanca



… ao ponto de dizerem que ele falava sozinho o que confirmava o estado de doente mental. 
Os pobres diabos não conseguiam compreender a realidade e os atributos de certos seres humanos.




Sintra


Poema para os meus filhos e netos

Tu, que vais mais à frente a milénios de nós 
incerto no teu caminhar mas seguro da bagagem, 
vais tão à frente a tantas gerações depois
que é inútil explicar-te que há um todo absoluto que transportas, 
que todos os mais atrasados que ficaram, 
os que investigaram e descobriram, 
os que lutaram e conquistaram, 
os que morreram por causas, 
os que te alimentaram e guardaram, 
os que já nada podem pedir
foram os que deram avanço para o teu avanço. 
Esse é o legado que transportas e se atentares verás 
os nossos passos no teu chão.



Porto



Sentou-se,
contou as flores que tinha à sua volta,
tomou nota,
virou a página do seu caderno.
Depois
contou as árvores que tinha à sua volta,
tomou nota,
virou a página do seu caderno.
Depois,
contou as pedras que tinha à sua volta,
tomou nota,
virou a página do seu caderno.
Depois,
contou as pessoas, contou as aves, contou os outros animais,
tomou nota,
virou a página do seu caderno. 
Ergueu-se,
para ficar mais perto do céu
e contou as estrelas que tinha à sua volta,
tomou nota,
virou a página do seu caderno.
Já estava muito alto, no meio das nuvens,
e contou-as,
e tomou nota.
E estando nisto, aos poucos,
foi-se fazendo noite, não tinha mais nada à sua volta,
tinha perdido tudo.
Fechou o caderno e adormeceu.
Quando acordou
o caderno tinha desaparecido.




Toledo



Hoje não vou escrever nada de jeito
porque depois da libertação das palavras
ao ver que a paz ficou do outro lado da fronteira
o que me ocorre é a revolta e depois um lamento. 
Não havendo paz quando se libertam as palavras
vão à frente em correria as mais carnívoras, 
vou guardar as outras as que vos quero oferecer
não quero fazer um poema de desamizade e de desamor. 
Por isso
hoje não vou escrever nada de jeito.



Minha harpa transforma-se em luto, 
e meu órgão na voz daqueles que choram. 
Poupe-me, Senhor, pois meus dias não são nada.




Porto



Algo me diz que me ouves
mesmo quando não te falo
ou quando não te chamo
ou quando não estou presente. 

Mas tenho esta dúvida constante
quando ao falar para ti
o teu silêncio mortal
me diz que assim tu não me ouves. 

Tento ouvir o que tu pensas
mas perto ou longe não sei
deixo cair o poema
faço a mala e vou partir
para poder estar contigo.



Roque Gameiro



Hoje quero fazer um poema feliz. 
Tento imaginar algo que me espante, que me agrade. 

Imagino por exemplo
como deve ser feliz construir uma ponte entre dois pontos
ou
sentar-me a olhar os do futuro brincando saudáveis e alegres
ou 
ver pares sorrindo tranquilos depois de cumprida a tarefa do seu dia.
Mas não, são temas triviais

Tento então imaginar
um deus em que acredite, bondoso, equilibrado, justo
que evite as tragédias e o mal 
que evite ser motivo de embuste e crueldade,
mas não me ocorre.  

Entretanto, de tanto imaginar se fez noite, há pouca luz. 
Talvez amanhã, ou depois, noutro ano, noutro século 
ou nunca.



Sintra


Hoje não há poesia, hoje há um protesto. 

Frugal = Que come pouco ou com moderação. 
Que mostra sobriedade ou moderação (antónimo: comilão, glutão, sôfrego, voraz) 
Comedido, moderado, sóbrio, simples, temperado (antónimo:  destemperado, intemperante) 

in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

Os países ao designarem-se (ou alguém por eles) de "frugais" sabemos desde logo o que acham eles de nós, ou seja, o adjectivo que tomam constitui indirectamente uma ofensa. 
O adjectivo que sugiro para esses países poderá ser "aproveitadores ou hipócritas" no caso concreto da Holanda é o terceiro país que mais ganha com o mercado único bem como com os impostos que são desviados do nosso país. 

O resultado de andarmos de "mão estendida" enquanto outros cá dentro se corrompem é este, a humilhação para todos.



Jorge Vieira



Este é o meu rosto
o mesmo que conheceste
no tempo em que o teu rosto
nada dizia das marcas do tempo. 

Conheço-te vagamente
sei quem és 
mas o nosso tempo não é o mesmo. 

Fingimos não dar por isso
e elogias a nossa juventude, 
não a outra, a de agora, 
exaltas a minha pouca idade nesta idade
e eu sorrio. 

Não sabes quanto me custaram
estes sulcos no rosto
para que o tenhas achado inalterado.



Paula Rego



É noite de natal
numa casa muito pobre
com chão em terra batida, 
toda a família sentada à mesa,
o pai fala:  
    -Vou fazer uma confissão. 
  Durante toda a minha vida
nunca gostei de ninguém,
por isso adeus!
O chão abriu-se por baixo da sua cadeira
e engoliu-o sem deixar vestígios.
A partir do dia seguinte
ninguém, nunca mais,
ocupou aquele lugar.





Estudo para a porta do sacrário da igreja do Loreto em Lisboa
Autor Augusto Rodrigues



Memórias de um artista em fim de obra

Há fragmentos seus dispersos pelas paredes
desse lugar que autorizava que ele se retalhasse. 
É ali que ele se vende em pequenos belos
cadáveres que já tiveram espírito, que já tiveram mãos. 
É daqueles que já foram jovens, 
que pertenceram ao enorme "bando" dos anos sessenta. 
Drogou-se com o maravilhoso Português Suave
ou com o carismático Três Vintes 
que comprava dose a dose no quiosque do fim da rua
da escola onde fingia que estudava, 
foi ali que aprendeu a retalhar-se com arte. 
É um sobrevivente das sentenças justas do Mário Castrim
renascido timidamente mais de cinquenta anos depois. 
Sempre teve tendência para andar de braço dado
com ninguém e ser amigo ausente de poetas e pintores
de quem guarda memórias inteiras
num sombrio armazém 
onde só entram os seus iguais, ou seja, ninguém. 
Sente-se uma ilha sem arquipélago, 
uma oitava de um velho piano, 
um pássaro pousado num quintal da cidade. 
Não sorri
porque exige respeito ou
porque já está morto.



Augusto Rodrigues



Desabafo secreto

 Não sei se já é a rendição
 mas já tenho um lugar onde me escondo
 quando discordas em voz alta
 e deixas para trás o próprio corpo.

 Não sei se já é a rendição
 mas tomo como um dia igual, que hoje
 sejas a vítima das tuas próprias respostas
 e a seguir seja o silêncio. 

 Não sei se já é a rendição
 mas adormeço quando me viras as costas
 e emudeces até vários amanheceres depois
 várias noites depois. 

 Não sei se já é a rendição
 mas quero-te ver deitada sob uma réstia de luz
 para me encher do teu corpo com palavras
 decoradas, repetidas até à próxima batalha.

 Não sei se já é a rendição
 mas vou ao ponto de dar nomes às derrotas,
 mas vou ao ponto de me ver no lugar onde m’escondo
 como um pacifista sem paz.



Foto de Bartolomeu Rodrigues



Antes que a chuva chegue retiro as palavras do meu estendal.





É o que vos digo, 
quanto menos coisas tiver, melhor. 
Para que me servem aquela mesa
e aquele cortinado e tantas louças para quê? 

Já aqui habitou alguém 
quando o tempo era mais vasto. 
Agrada-me o vazio deste meu espaço 
basta-me a minha memória cheia. 

É o que vos digo, que já sou velho,
bastam-me uns quantos livros à cabeceira, 
meia dúzia de discos de música nostálgica, 
uma muda de roupa de cama. 

Fico bem sózinho 
já que tenho a tua foto por toda a casa
quando me desloco e apago a luz 
logo me iluminas o caminho mais adiante. 

Será mais fácil a tarefa
dos que chegaram depois de nós, 
virão com os olhos dramáticos cerrados
para encontrar o que resta do que foi salvo. 

Não posso é deixar que haja silêncio
por isso dou comigo a falar comigo
descubro sempre diálogos antigos
em que consigo falar pelos dois. 

Descobri que assim já não estou só.




Também tenho as minhas dores
à noite quando me deito. 

Não sei se o que mais me dói 
é esta dor no meu corpo ou
quando de olhos fechados
decanto todo o meu dia. 

Qanto aos dias
classifico-os e arquivo-os
"SEM INTERESSE" 
"ASSUNTOS RESOLVIDOS". 

Às minhas dores no corpo
embora as classifique
não as posso arquivar. 

Quando encerrar a actividade
os arquivos vão ficar
as dores levo-as comigo.