Estudo para a porta do sacrário da igreja do Loreto em Lisboa
Autor Augusto Rodrigues



Memórias de um artista em fim de obra

Há fragmentos seus dispersos pelas paredes
desse lugar que autorizava que ele se retalhasse. 
É ali que ele se vende em pequenos belos
cadáveres que já tiveram espírito, que já tiveram mãos. 
É daqueles que já foram jovens, 
que pertenceram ao enorme "bando" dos anos sessenta. 
Drogou-se com o maravilhoso Português Suave
ou com o carismático Três Vintes 
que comprava dose a dose no quiosque do fim da rua
da escola onde fingia que estudava, 
foi ali que aprendeu a retalhar-se com arte. 
É um sobrevivente das sentenças justas do Mário Castrim
renascido timidamente mais de cinquenta anos depois. 
Sempre teve tendência para andar de braço dado
com ninguém e ser amigo ausente de poetas e pintores
de quem guarda memórias inteiras
num sombrio armazém 
onde só entram os seus iguais, ou seja, ninguém. 
Sente-se uma ilha sem arquipélago, 
uma oitava de um velho piano, 
um pássaro pousado num quintal da cidade. 
Não sorri
porque exige respeito ou
porque já está morto.


15 comentários:

  1. Li, reli, e não encontro nada de jeito para dizer.
    Acho que bloqueei. Poderia ficar calada.
    Seria esse o procedimento normal de quem não encontra nada para dizer.
    Mas quem estipulou quais os padrões da normalidade?
    Sinto-me exausta.
    Amanhã voltarei.

    Boa noite.

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    1. Também não sei o que responder, espero que a sua exaustão não tenha a ver com a leitura do texto.
      Obrigado pela sua visita. Boa Noite.

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    2. Olá, bom dia! :)
      Não, não se preocupe. O meu cansaço deve-se a coisas cá minhas.
      O texto requer atenção e poder de análise, mas não cansa.
      É a viagem de alguém a lugares recônditos do seu passado...penso!

      Tenha um bom dia.
      ( vou tentar que o meu também o seja.)

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    3. Muito obrigado pela resposta. Sim, viagem ao passado.
      Bom dia também.

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  2. Nota-se uma clara evolução na escrita.
    Bastante positiva.
    Já é mais complexa, no sentido positivo do termo, do que era há uns dias.
    Gostei.

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    1. Muito obrigado pela visita. Curiosamente esse texto é mais antigo mas tomei nota da sua observação, que agradeço.
      Bom Dia

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  3. Bom dia:- Regra geral, todos os grandes artistas, pintores, escritores, poetas, foram grande "vadios", bons viventes dos dias e das noites, de Lisboa, Porto, e outras cidades. Parece que os vejo, cigarro ao canto da boca, cabelo desgrenhado, inclusive sujo.
    A verdade é que todos esses artistas deixam fragmentos seus dispersos por quadros, folhas de livro, pinturas nas paredes
    Gostei muito da imagem e do poema.
    .
    Abraço
    Cumprimentos.

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  4. Autobiográfico? Poderia sê-lo se tivesse sido escrito por mim, mas seria um pouco menos soturno... não vejo o meu humilde T1 como "um armazém sombrio" e sim como uma decadente biblioteca grávida de móveis desfeitos pelo tempo, de cactos e de plantas suculentas.

    Sem dúvida pertenci a um bando literário dos anos sessenta, mas era tão pequenina ainda que duvido que o bando visse em mim mais do que uma mascote ou a personificação de uma certeza de vir a dar-lhes continuidade no "canto", ainda que neste meu jeitinho de "ilha sem arquipélago". E sorrio muito. Sorrio frequentemente entre gargalhadas. Nunca choro e o velho Português Suave - azul, se faz favor! - foi substituído pelo Austin ou pelo John Player Special 100%.

    Abraço, L.

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  5. Bom dia, agradeço o seu comentário e a identificação com parte do que lá digo. Eu também brinco e faço graça de muita coisa que vejo diáriamente.
    Já não sou fumador há 25 anos, já nem conheço as marcas. Gostei do seu comentário.

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  6. um texto de memórias. das minhas, também. um tempo, como já não há...
    e não vem.
    o cáustico e acertivo mário castrim, no saudoso diário de lisboa, tanta falta faz
    agora, nesta tv asquerosa, de vaidades e
    desmedida droga (antes o português suave),
    a queimar neurónios.
    gostei imenso.
    abraço

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    1. Muito obrigado pelo comentário, vejo que se recorda do Juvenil, uma separata do Diário de Lisboa, tenho um monte delas que guardei. Estou de acordo com as considerações que faz da tv.
      Até logo.

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  7. Trabalhei no DL desse tempo
    Não vejo TV desde que...
    nem me lembro

    E quem não sorri
    considerou-se morto
    e lá morreu

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    1. Também trabalhei num jornal "O Diário" e apesar do desenrolar da "coisa" ainda sorrio.
      Muito Obrigado pela visita e pelo comentário.

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