Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Tudo era poesia


Cheguei atrasado à poesia

ocupado com a sobrevivência 

de duas bocas na inocência da fome

com uma revolução 

que me puseram nos braços 

com tropeços do coração 

e a confusão das idas e dos regressos


tudo atrasou a minha chegada à poesia

nesse tempo desconhecia

que tudo isso era a poesia

e que o atraso era apenas

o medo de chegar tarde à vida

com duas bocas na inocência da fome


e isso não eram só palavras.




Foto de Daniel Filipe Rodrigues


Dúvida


A desgraça de decidir salvar alguém 

é acreditar que sobreviveremos

a esse salvamento.





Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Um poema sem título


Dei cabo de ti

a golpes de ternura

fiz questão de acertar

nos lugares mais vulneráveis 

do teu corpo

quando já estavas

inerte de cansada

deixei flores e trevo a germinarem 

entre os teus seios 


abri as portadas da janela

vi o caminho que ainda 

teria de fazer para regressar

ali mesmo crepitava

um rio de setas

a indicar-me o caminho

com a janela aberta

um bando de moscas

entrou pelo quarto dentro

eram tantas que te acordaram

e me estragaram o poema.



 

Foto de CNN Brasil



Veneza não existe

tu não existes


Dizes que em Veneza

foi o fim de tudo entre nós 

mas

ou eu já não me lembro de ti

ou nunca estive em Veneza.





Vídeo do autor do texto



A morte do poeta


Lamento a morte do poeta

mas aqui ninguém chora 

Piazzolla obriga-me às lágrimas 

OBLIVION

a aflição de não querer

perder nada

nem o traço com o dedo

no chão de areia

um nome

uma cruz

um coração 

ou uma fonte de sangue

em veias ainda não conhecidas

lamento a morte do poeta 

mas aqui ninguém chora. 

 


Na morte de Fernando Grade

 



Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Eu escolho


Eu escolho o lugar

eu escolho o rio

eu escolho a margem

eu escolho o olhar em volta

eu escolho o presente 

      e o futuro

eu escolho o dia

eu escolho a hora 

      o minuto e o segundo 

eu escolho as palavras 

      e a forma de as dizer

 eu escolho para quem

       envio essas palavras 

eu escolho a dor

eu escolho o escuro

      ou a luz

eu escolho o fogo

      e as cinzas

eu escolho o lugar

      onde me dou ao vento.



 

Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Para o outono já!


Que não venha lá a primavera

com as suas florzinhas

os passarinhos no chilreio

e os sapos a acordarem

aqui ninguém é feliz

todos têm fome

e muitos trabalham de noite

o melhor é passarmos

directamente para o outono.



 

Foto do autor do texto tomada do documentário VIDA SELVAGEM



Só falo a pedido


Tornei-me hábil a esconder o olhar

aprendi a calar as palavras

consegui respirar mais devagar

tive de dominar as mãos 

sujeitei-me a ouvir tudo


sento-me à porta da minha casa

com um cravo sobre os joelhos

vejo passar 

os cegos, os surdos e os mudos

e quando me pedem

desnudo-me completamente

e falo.



 

Foto do autor do texto



Vontade própria 


Convocar a nossa morte

é um processo lento ___ suave

de crença e amor pela vida 

como ela é 

de respeito pelo ser humano

que somos ___ convictos

ainda que ambíguos

antes da vontade própria 

um sorriso confuso numa foto

a última 

um colarinho desapertado

um gesto frívolo no cabelo

e toda a vida se torna irrelevante 

no último assomo da vontade.



 

Foto do autor do texto tomada do canal Mezzo 



Fotografo-te

Fotografo-te

pedes-me um grande plano

e sorris

o projector ilumina as dores 

que trazes nos cantos da boca

ilumina

as tuas alegrias que trazes

no horizonte dos olhos


o teu rosto é música suave

que gravo em rectângulos de papel

sorri apenas ___ não fales

há amargura nas tuas palavras

e isso desfoca o grande plano.