Quantas horas tem o dia,
quantos dias tem o ano,
quantos anos tem a vida,
quantas vidas tem o mundo,
quantos mundos temos nós?

Quantos dias tem uma hora,
quantos anos tem um dia,
quantos mundos tem uma vida,
quantos de nós tem o mundo?

Conta o tempo,
vive a vida,
olha o mundo
e vive sempre pensando,
que o mundo vale uma vida,
desde que não se perca tempo.



As palavras já estão molhadas e ainda assim aventuram-se no diálogo pantanoso.




Entendo-te
na verdadeira acepção da palavra.
Entendo-te
quando me olhas com os teus olhos fechados.
Entendo-te
quando há palavras que já não queres dizer.
Entendo-te
quando para ti dia e noite são o mesmo tempo.
Entendo-te
quando manchas o céu de outra cor
Entendo-te
mesmo quando tu queres que eu não te entenda.
E à força de tanto te entender,
sou eu que já não me entendo.




Viveremos encostados,
enlaçados,
misturados,
até que sendo coados,
seremos de novo nós,
numa mistura coerente,
mas na verdade diferente.




O tempo não é fatídico, o que te tirará a voz é a vontade de falar.




Foi
como se tivessem aberto as comportas do medo
como se tivessem retirado dos álbuns
as fotos da nossa infância,
e nos empurrassem
para aquele espaço vazio.
Foi
como se tivessem aberto as comportas do medo
como se o medo nos prendesse ao chão
no tempo dos pesadelos,
do sono da nossa infância
Mas
quando se abriam as comportas do medo
eu sabia que chegavas
pelo cheiro dos morangos
naquele cesto agora abandonado e coberto de pó
A liberdade de ser nosso aquele espaço vazio,
agora,
abre-nos as comportas do medo,
fecha-nos as mãos __ vazias
invade-nos um frio exacto.




Quando deito o meu corpo
Sobre o teu corpo deitado
Ficas comigo marcada,
O meu peito no teu peito
As tuas pernas dobradas
Nas minhas pernas deitadas,
A tua boca somada
À minha boca domada
Os teus dedos nos meus braços
A tua vida encontrada.

Um dia não terei corpo
Ficarás com as minhas marcas
No teu corpo libertado.


                                                                Foto de Bartolomeu Rodrigues


A confidência, a intimidade comigo mesmo acorda uma momentânea e aflitiva saudade.

        


Podem ser velhos, podem ser grotescos, mas cantam e cantam juntos.




O que importa é o rosto
a moldura de todas as emoções
a verdade do que sentes
o que por vezes não dizes.
O que importa é o rosto
a verdade das emoções
a moldura da verdade
a verdade do que dizes
o que por vezes sentes
em que as emoções no teu rosto
não chegam para que a verdade
dispense o que queres dizer.
O que importa é o teu rosto
o lugar dessas palavras
e das tuas emoções.





Há um homem calado
que tem a noite no seu quarto
sendo de dia lá fora.
Não fala e tem um olhar distante
fixo num silêncio que persiste
palavra a palavra.
Essas palavras assustam na sua combinação
e não calam o silêncio.
O homem calado
que tem a noite no seu quarto
sendo de dia lá fora,
pega nelas e domina-as na sua imaginação.
Sem qualquer explicação
inscreve na primeira página da última noite sem dia
uma frase que lhe adormeceu na memória
“Temo que sejas toda a minha vida”.


  
                                                                 Foto de Bartolomeu Rodrigues


Tristeza é viver numa casa onde há sempre inúmeras cadeiras abandonadas.




Pinto o muro da minha casa,
pinto o muro… e pinto a casa,
pinto o mundo, o mundo à volta dela,
pinto o mundo… e pinto a cara.
Pinto o muro, 
pinto a casa,
pinto o mundo
e pinto a cara.
Tudo branco, muito branco sobre branco
talvez assim se perceba,
que um muro é uma fronteira,
que uma casa é um mundo,
que um mundo é uma casa,
que a cara é tudo isto
e mais a cara que temos.




As palavras já não dizem só o que querem, dizem mais do que o seu som.


      
Foto de Bartolomeu Rodrigues


Um abraço é um pedido.
É um pedido de sufoco.
De sufoco do que sentes.
Do que sentes quando pensas.
Quando pensas no que sentes.
No que sentes quando pedes.
Quando pedes que te abracem.




As palavras morrem à nascença quando nascem de um ventre doente.



Foto de Bartolomeu Rodrigues 


Sim
o Ruy Belo também é
o meu poeta preferido
faço-te justiça
a tua escolha também é
a minha escolha
e peço-te desculpa
por escolher tão tarde.
Tão tarde que nem saberás 
no teu silêncio
que fiz a minha escolha
no teu silêncio.
Tão tarde que,
como o poeta disse
“estas palavras são apenas para orientar o coração”
e rirás
naquele teu riso directo e claro
que me dará a certeza
de que a tua morte
ainda é vida
embora distante e eterna
como a poesia de Belo.



Este calor, esta ansiedade é a medida inexacta de quanto demora a noite exacta.


                                                                                                 

Visto com as tuas palavras um corpo desacreditado.


Foto de Bartolomeu Rodrigues 

A confidência, a intimidade comigo mesmo acorda uma momentânea e aflitiva saudade.




Os lugares que escolho para a nostalgia são as bancas dos alfarrabistas.



Há palavras inconfessáveis que são ridículas confissões.