E agora?
Ficou tudo como estavao teu lenço-cofre de lágrimassobre a mesa de cabeceiraa toalha de banho com o desenhotodo teu a secar na margem da banheirao livro que estavas a leraberto com as páginas escondidassobre o maple ___ concha do teu corpoos chinelos sem péscada um para o seu ladoa louça do jantarainda sobre a mesa a fumegara televisão ligada no canal da músicanuma cantata lancinantetrevasa silhueta breve de um anjoum arcano a pairar na penumbrae agora o que farei sem ti?
Caminheiro sem sapatos
Calço os teus sapatos e caminho
eles são à medida da vertigem
de caminheiro inútil
tomaste conta da minha viagem
e trago-te na memória
como uma mochila de pedras
sou já um aposentado dos sentimentos
e sei que não há compaixão
para quem vive de tão curta pensão
darei a volta ao mundo
ao meu mundo cansado
no regresso deixarei à tua porta
os teus sapatos e neles
a primavera de um lugar longínquo
rasgo o mapa da nossa vida
e parto descalço.
O alimento do poeta
Digo-te palavras a esmo
para que acredites que sou um poeta
tu dizes
que inutilidade a do poeta
quando confunde
o seu prazer de morrer de contente
no fim de um poema
com o prazer que julga haver nos que
apagam com os olhos as suas palavras
eu digo
como é diferente quando o poema
nasce na boca do poeta e
quando o poema passa a viver
na boca de alguém
mas a boca do poeta
também alimenta o corpo do poeta
este ao terminar o poema
pede um chá preto e um mil-folhas
que é o que está mais de acordo
com o seu estado de espírito
digo-te
nunca mais te darei as minhas palavras
nem a minha boca.
Não compreendes
A poesia não esclarece
a poesia não é lógica
a poesia é a invenção
do que ainda não foi inventado
inventa
que uma lágrima pode inundar
a nossa geografia quando em sossego
inventa
que chorar em Dezembro
aprofunda o silêncio e as sombras
inventa
que nos vemos num quadro negro
perante o qual alguém chora
não compreendes que a poesia
não esclarece nem é lógica
a poesia inventa que tu próprio
podes ser uma invenção da poesia.
Sem nome
Ficou sobre a mesa uma acumulação
de palavras frias
ficou sobre a cama fria
uma acumulação de gestos
deixaste friamente um lugar vazio
mas não deixaste o teu nome
naquele dia de inverno
se um dia quiseres
poderei ir ao teu encontro
numa qualquer fronteira de qualquer país
mesmo que em guerra
e aí repetirei o teu nome
tantas e tantas vezes calorosamente
que o vou decorar para sempre.
Os deveres domésticos
Não posso interromper a audição de Ressurreição
não posso apagar Ressurreição com o ruído do aspirador
deixo crescer o pó enquanto a música não parar
e ela não vai parar nunca mais ___ nunca mais
será tanto o pó que deixarei de respirar
eu sei
mas que importa ___ Mahler também já é pó.
Evasão
Poeta prisioneiro que se evade
cada letra a impressão digital
deixada na fuga
com palavras a correr perseguido
palavras resgatadas
que cada um guarda
sem significado conhecido a não ser
o que o seu próprio criador conhece
o significado conclusivo
de uma vida toda prisioneiro
em espera
a espera é a destruição do desejo
salva-se a poesia.