Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Toma conta da tua rotina

e rasga-a com os dentes


Depois do vulcão de anos na tua casa 

agora estás em quietação 

ninguém dentro desse silêncio 

confeccionas a tua própria sopa 

à medida da tua boca rotineira

e ao jantar repetes até ao enjoo 

o pão que afogas numa cerveja 

pões à tua frente as fotos dos que te faltam 

é comovente mas insistes na dor

assim talvez também sintam a tua falta 

comoção e dor também são vida

no corredor da tua casa ainda ouves 

a correria do teu filho ___ a sua voz

antes de lhe ter crescido a barba escura

com que te beija tangendo a tua barba branca 

quando te visita no dia de natal 


sei o que te sulca a alma todos os dias

pores-te a pensar que tens um nome 

e que já nem te lembras da última vez 

que alguém o disse em voz alta 

compreendo-te na tua forma de estares só 

espera por uma visita e enquanto esperas 

dissolve num café com lágrimas 

a ansiedade da espera 

e rasga a tua rotina com os dentes.



 

Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Sei onde estarei

Penso na morte
como um nascimento
para o lugar de onde vim
e que reconhecerei à chegada.




Foto do autor do texto



A juventude é a memória 


Diz-me em Setembro

que depois deste verão 

ainda haverá outro verão 

no mesmo lugar

e que todos estarão 

connosco de novo

mesmo os que nos faltam

e que o desespero não será 

uma palavra pronunciada

porque todos teremos tempo

para as despedidas 

nada será imprevisto 

ou doloroso 


diz-me em Setembro

quantos de nós sobreviveram

diz-me que todos 

voltaremos a encontrar-nos 

ao cimo das escadas

daquele hotel barato junto à praia 

para as despedidas do que será 

o último verão 


diz-me em Setembro

que as memórias ficarão 

e que a nossa juventude foi

mil vezes um verão feliz

voltaremos a encontrar-nos

cinquenta anos depois

e não nos reconheceremos.



 

Fracção de foto de autor desconhecido



Não esqueço


Lembro-me de tudo

como se tivesse acabado de acontecer

os teus olhos pretos ternos

a lançarem palavras em coro com a boca

era música.











Foto do autor do texto tomada do documentário VIDA SELVAGEM



Fico assim


Sou espectador de mim próprio 

assim sendo estou sempre comigo

debaixo d’olho

despenteio-me todos os dias

estou farto do cabelo alinhado

riscos no crânio sem utilidade

nem a beleza

nem o amor

nem a esperança 

importam agora __ quanto mais

pentear-me todos os dias

nada altera a fome o frio a morte

com zelo e surpresa vigio-me e 

não adormeço com medo de sonhar.



 

Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Apenas a chuva


Esperei a vida inteira 

encontrar uma fonte

construí com as minhas mãos 

uma concha de barro

para louvar as primeiras gotas

por agora viverei da chuva 

à partida e à chegada


e o tempo vai passando 

e eu a contá-lo

com a espera a concha de barro 

regressou à terra

e eu com as mãos em concha 

à recolha da chuva


é severo esperar uma fonte 

que nos traga um poema

para nos matar a sede

e ter de beber a chuva.



 

Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Amor? 


Quando chegaste 

o meu coração saltou de contentamento 

saltou com tal força que caiu ao chão 

a ali ficou a bater a bater 

como um peixe fora de água 

 

que amor é o teu 

que não foste capaz de o ajudar 

a voltar ao seu lugar?



 





Talvez seja possível inventar um poeta

em oito partes penduradas umas nas outras



Parte 8


o poeta inventado refeiciona fora de horas

e come sem regras saudáveis 

passa muitas horas sem se alimentar

como um hibernador até fazer um intervalo

na leitura de um livro que lhe interessa 

o poeta inventado inventa palavras

julga até que inventou uma vida

um dia o poeta inventado escreverá um poema

a que dará o título Autorretrato. 








Talvez seja possível inventar um poeta

em oito partes penduradas umas nas outras



Parte 7


o poeta inventado sente-se capaz de escrever

para enganar a morte e tem conseguido

mas sente-se desleal para com os seus amigos 

os mais novos que já morreram 

enquanto ele continua ainda vivo

por isso o poeta inventado tem momentos

em que acha o suicídio inevitável 

e pensa nisso durante minutos de introspecção 

até ser interrompido pelo telefone

ou por crianças aos gritos na escada da sua casa



continua