Foto do autor do texto tomada do documentário VIDA SELVAGEM 





Entendi

Encontro o significado

da frase que deixaste 

no bilhete de papel cor-de-rosa 

sobre a cómoda 


     Todas as aves voam até 

     serem capazes de voar


Sei que ouvirei

o bater das tuas asas

ainda por muito tempo.






 


 Foto do autor do texto





Por que


Por que te crescem 

lebres na boca? 

Por que é sombrio

o teu sexo? 

Por que trazes sempre

uma criança pela mão? 

Por que é sempre madrugada

sobre a tua casa? 

Por que não cantam

as flores do teu jardim? 

Por que me manténs 

sob ameaça? 


Não consigo cruzar

o meu olhar com o teu.




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Foto Diário de Notícias
 


Luís Moita

Agosto 1939 - Janeiro 2023



 


 Foto do autor do texto




Falar com o passado


De vez em quando

meto conversa

com o meu passado ___

___ a bem dizer é o meu passado

que tenta conversar comigo

Tem dias em que é 

de tal modo impróprio 

de tal modo insistente 

que me inebria

com as suas recordações 

e fico algemado

a cada ideia

a cada palavra

a cada nome 

O meu passado

quando mete conversa comigo

começa com mansidão 

com pequenas e felizes recordações 

mas assim que me apanha absorto

franqueia a entrada

mais profunda e sombria 

para os meus arquivos ___

___ mas eu estou vigilante

por isso

passado ___ não quero mais

 falar contigo!




 


 Foto do autor do texto tomada do documentário VIDA SELVAGEM




O meu e o teu nome


Tu és o meu outro nome

     o som de um suspiro

     o silvo de um comboio a partir

     o canto de uma ave que chega

     os acordes finais da música eleita

     o sopro do fumo de um cigarro

     o tilintar de um copo numa mesa

     a fala das cigarras numa noite de Verão. 


Tu és o meu outro nome

mesmo que irada negues ___

___ o meu nome é o mesmo que o teu.




 



 Foto do autor do texto tomada do documentário VIDA SELVAGEM




A vida


Na brutalidade da vida

já ninguém traz nas mãos 

rosas douradas

só anéis falsos e

vestígios do trabalho 


Na brutalidade da vida

as mães já não cantam

para os seus filhos

há aparelhos

que cantam por elas


Na brutalidade da vida

já poucos querem saber

do mistério da poesia

o mistério são as carnes

ocultas da vizinha


Na brutalidade da vida

os pais dizem aos seus filhos

     põe a poesia 

     na borda do prato

     e come só as batatas fritas


Na brutalidade da vida

o povo já não clama em coro

o povo adormece no embalo

cor-de-rosa e enjoativo 

das telenovelas


Na brutalidade da vida

chegará o dia em que

correremos em hordas 

de lenços brancos nas mãos 

sem que saibamos

porquê e para onde


Esta será então 

a maior brutalidade da vida.




 



 Foto (fracção) de Daniel Filipe Rodrigues





Vem o mar e… 


Eu sou o poeta

     da amargura

     da meia-noite

     do sono breve

Eu sou o poeta

     que inventa

     que sonha

     que mente 

Eu sou o poeta

     que faz da verdade 

     a melhor maneira

     de mentir

Eu sou o poeta

     filho de Augusto

     exilado

     como Ovídio 


Sei que um dia

vem o mar e leva-me.