Foto do autor do texto



As duas chávenas 


Fico-me a meditar

sobre a variação da minha existência 

quantos de mim já existiram

quantas contradições entre eles

quantos de mim se salvaram

em quantos mundos vivi

quanto tempo ___ quantos séculos 


sendo a infância o tempo

mais longínquo antes da libertação 

depois de vivo e consciente 

quantos úteros conheci

infecundos

insensíveis 

irresponsáveis 


sou crente à minha maneira

creio na não existência de um deus

misericordioso e equilibrado

não tenho por isso a quem pedir nada

creio na minha individualidade

creio na presença dos outros ___

___ na minha solidão 


abro a porta do armário 

da que foi a nossa cozinha

retiro a chávena rosa ___

___ só uma 

e fico-me a meditar 

que útero tomará a seguir como sua

a outra chávena rosa.



 

Foto do autor do texto



Ponho-me a nu


Na ambiguidade da função das mãos 

deixo-me crescer

aceito que elas decidam como se benzer

enquanto dedilho umas notas no piano

com a outra mão 


na ambiguidade do pensamento 

julgo-me capaz de escolher

a cor do dia que virá 

num pantone imaginário 

em que a noite não está prevista


na ambiguidade da função da vida

ora me benzo ___ ora toco piano

ora me lembro do dia ___ ora me esqueço da noite

ora escolho ___ ora me deixo escolher

assim

ou me visto de fantasia ___ ou me ponho a nu.



 

Foto de Daniel Filipe Rodrigues



O amor não voltou


São os últimos barcos

disse ___ cansado

não chegou ninguém 

disse ___ passando bruscamente 

do tudo para o nada

nesse instante que de cruel

o amor tem quando acaba.










Foto de Daniel Filipe Rodrigues


 

Possibilidades de salvação 

antes de emudecer


Resta-me a música flutuando

para a salvação do meu pensamento

tal como uma palavra em brasa

pode salvar-me uma ideia

tal como o quadrado de luz fiel

pode salvar o meu olhar. 

 

penso todas as manhãs que 

não soube medir o tempo___

___ confesso.



 

Foto de Ana Luís Rodrigues



Na ausência da tua imagem 


Naquela parede ficou um rectângulo 

uma sombra de nada

depois de levares a moldura

com a tua fotografia

para que não fique ali a tua ausência 

cubro a memória que tenho de ti 

com a tapeçaria  

que comprámos em Istambul. 



 




Desdiálogo com o sol

Tiveste saudades minhas? 
perguntas

Não faças essas perguntas
entre duas tempestades
digo

Mas agora há bom tempo
dizes

Até vir a tormenta que poderá ser
no seguimento da minha resposta
explico

E a claridade do dia escureceu
o mar ficou revolto
e a trovoada desabou
 
é assim que as tempestades 
se sucedem sem tempo 
para as saudades do bom tempo.