Madrid, ainda te conheço 


Madrid, ainda me conheceste. 

Depois de tantos anos

ainda me chamaste Don

e puxaste a cadeira para me sentar. 

Por detrás daquela porta

o sapateado soou ao mesmo

e havia calor nas vozes do flamenco 

a que assisti na mesma mesa de sempre. 

Percorri-te esbanjando o meu olhar

em tudo o que me mostraste. 

Nem posso acreditar que já estás 

somente em ondas de memória 

e que não mais voltarei a ver-te. 




 




A lua decidirá a que horas vais nascer. 


Está uma tarde nostálgica e maravilhosa, 

cinzenta mas ainda assim clara

de uma claridade em que o verão resiste

à intromissão teimosa do Outono. 


Espero-te há dois dias conforme combinámos, 

fiquei aqui, neste cais, 

com a esperança que viesses

desembarcar no meu caos. 


Troveja ao longe, cada vez mais perto

e já chove na minha vida. 







Caminheiro inútil 


Ao longe uma fila dourada de pedras erguidas

muralhas em volta da terra da minha avó. 

O sacrilégio da fuga para o chão inimigo

fará com que ela até ao fim 

recite e exiba as origens

como se do pecado se redimisse. 


Depois do sangue, 

Ávila desde logo aprisionada

lá ficou até hoje encantada e desconhecida. 

E eu peregrino à terra da semente

para quebrar o mistério da origem,

sento-me descansando num jardim da cidade.








Alinhavos


Disseram-me:

Abre a janela e olha para o futuro! 

Abri a janela, olhei e vi o horizonte laranja de fogo.

Era pôr do sol. 




 




Quando é noite, muito de noite

deito-me e ouço os sons abafados e longínquos, 

uma criança que chora e soluça, 

uma torneira que repete e repete o pingo, 

um cão que ladra em alerta, 

ouço até a minha respiração. 

Naquela quietude há um zumbido

que torna o silêncio mais profundo

e no escuro sinto-me sem corpo

sou apenas um pensamento

sem nada de palpável. 

Invento a tua presença hoje, amanhã e depois

até o poema apagar neste silêncio 

o desejo que me acorda a cada instante.




 Declaro que sou feliz


Aqui chegado tudo parece estar certo

mesmo quando a "certitude" 

é só dentro de nós. 

Sou tão feliz e em sossego

que os descendentes distantes

no seu labor e harmonia

descansam no meu descanso

ninguém ousa interromper. 


Sento-me no lugar que é só meu

a digerir com atraso as fatias

de sonho, fantasia e saber

que tenho na minha estante. 

Isto é felicidade

porque já esqueci a saudade 

de quando não estava só. 

Pouso o Manuel Bandeira

sobre a manta sobre os joelhos

e fico-me… 

com o som cavo deste contrabaixo.









Ouvi dizer, ao longe, quando vens. 

Posso assim abrir uma clareira

no mato em volta da minha casa. 


Sempre me disseste que a minha casa

"era um sossego" e assim ficou

depois da tua ida sonâmbula. 

Cresceu o mato em volta da casa, 

é verdade, mas também 

na minha memória de ti. 

Tudo se afogou na falta de palavras

até os vasos com flores,

as tuas flores como dizias, 

ficaram velhas e morreram. 


Ouvi dizer, ao longe, que ias voltar

para o sossego da minha casa. 

Esta noite deixo-te a luz da porta acesa

e a mesa posta com tudo de que precisas. 

À hora a que voltares não terás 

de rever a minha boca, os meus olhos

ou ouvir a minha voz

transtornada pelo teu regresso, 

estarei longe embora ficando aqui. 


Deixa de novo crescer o mato

em volta do sossego da minha casa.







Nunca mais te vi meu amigo


A tarde estava a terminar 

nostálgica mas maravilhosa, 

cinzenta com um sol distante. 

Sempre acreditei que virias

naquele teu passo miúdo.

Vi que falavas com fitas de côr

que saíam da tua boca. 

Apercebo-me dos sinais, subtis, 

as marcas desse peso

que te fará cair desamparado

para o outro lado das lágrimas. 

Houve entre nós um abraço 

que já não foi deste mundo. 

Depois, 

nunca mais te vi meu amigo.




Foto Bartolomeu Rodrigues 




Tenho para trocar
um móvel vermelho do meu quarto
e com ele as memórias do que viu. 

Quantas velas arderam sobre ele
em noites adocicadas? 
Quantas imagens ora pausadas, 
ora frenéticas correndo atrás do tempo? 

E de tudo ficaram os segredos, arrumados. 
De um lado uma porta 
com os maiores momentos 
na tentativa do sonho. 
Do outro lado as gavetas
com a recolha ordenada
de alguns gestos e muitas palavras. 

Troco pela melhor oferta 
o móvel vermelho do meu quarto. 
Está feito o anúncio, agora
vou com o cão à rua.




Foto Galerias LHUCA - Texas, EUA



Soletro as cores deste nome
Mark Rothko


Vermelho, amarelo, laranja

é o inferno que se derrama

dos nossos olhos

paralisados na cor. 


Mas lemos nas paredes

a angústia do negro em volta

que nega a melancolia

e pede a contemplação.


Coragem na renúncia 

à convenção da pintura

para estabelecer um pacto

entre a cor e a turbação

que ninguém pode explicar.

A dádiva convoca-nos

para a coragem de sentir

a experiência que se afunda em nós. 


Sempre o fumo que te envolve, 

um copo ao alcance da mão 

que ergues com a poesia 

e a música intensamente

à mais elevada emoção.


O diálogo com a tragédia e o sagrado

determina a tua sublime finitude. 

A forma como se insinua a mortalidade

chegou antes do dia

que escolheste para ti

deixando as cores a brilhar 

na escuridão. 


Neste poema sempre inacabado, 

soletro as cores do teu nome. 









 

 




Hoje está a chover


Não sei ao certo onde é o lugar do outono

mas sinto, onde quer que ele esteja

que também está dentro de mim, 

doce e triste ao mesmo tempo. 

Já sinto frio, 

queimo tudo o que deixaste 

para me aquecer, 

sem ti.






Para Amy


Cheguei tarde à tua voz. 

Voltaste para o negro

mas essa voz ficou no lugar

que tenho para ti no meu tempo. 

Perdoo-te que não quisesses mais

ficar neste mundo minúsculo 

com um copo suspenso nas mãos 

assistindo aos resíduos das canções,

reconheço em ti a capacidade

para fazer essa viagem. 

Da terra, sai música.





 

Hoje é dia de me confessar

Sou capaz de me tornar vulnerável, 
vou perder a sensatez
e vou-me confessar aqui. 

A minha boca move-se 
não são rezas, são palavras, 
são o disfarce da verdade
que faltou à minha infância. 

 

Na verdade nem tive infância, 
          confesso. 
Fui assim como uma folha 
no Outono, errante com o vento, 
          confesso. 
Até chegar aqui, tão longe, 
sem forma definida, 
          confesso
E isso faz com que tema a noite
e me assuste com o dia, 
          confesso. 
Porque fico sem consistência 
no que penso e nas palavras, 
          confesso. 

Sou capaz de me tornar vulnerável, 
acendo uma pequena luz
          e adormeço. 


 




A minha memória é fraca
nada do que me dizes retenho
nem um antigo soluço de espanto. 
Nada do que te digo retenho, 
esqueço até que cheguei a ter
uma semente silenciosa
a germinar no meu peito. 

A minha memória aos gritos
enfatiza as palavras apertadas
que nunca fizeram caminho
e que acabaram por devorar o silêncio. 

Já nem me lembro bem do assombro
das minhas mãos nos teus seios.






Faço o poema como se fosse o pão do dia. 

Alinho no papel versos esparsos, 
depois paro
fito o tecto como se fosse o céu 
e vejo manchas, faltas de tinta. 
As casas também têm as suas mazelas
as suas zonas sombrias. 
Olho para a minha casa velha
e digo alto

Nunca pensei que pudesses morrer. 

Depois, 
volto ao papel
e termino aqui o meu poema.






Foi um despertar repentino
e a partir daí construí o meu poema

Já tinha clareado no meu quarto
ao abrir os olhos vi em frente
a reprodução do quadro de Frida
que comprámos em Paris no outono
do primeiro ano do nosso futuro acabado. 
Sentada numa cadeira amarela
dentro de um fato de homem
tão maior do que ela era
tomou o lugar do Diego
mas não deixou de ser a Frida
nas firmes sobrancelhas e
nas finas mãos de mulher.
Há cabelo por todo o espaço em volta
o seu amado cabelo de mulher, 
não consegue mesmo assim
esconder o seu desejo e o seu enigma,
a forma como alterna o que é fêmea 
e o que é macho, na dor do sexo perdido. 

Acordo da minha noite oblíqua 
deparo com aquela Frida
vinda de Paris num outono irreal
e digo-lhe sem falar
pintaste o teu desgosto e iluminaste o meu.