Foto de Daniel Filipe Rodrigues





 
Uma grande mentira

Nasci em Março 
foi esta a minha vontade
Estou no meio de Março 
sento-me à sombra de um pessegueiro 
já em flor
espero o momento para nascer
conforme pedi à minha mãe 


Sempre fui determinado
no lugar e no tempo
em que quis nascer
e a Primavera foi esse tempo
Fiquei deitado
com as mãos sobre o ventre
a meditar
     só morre quem está vivo
     só canta quem tem vontade. 
Ter nascido em Março 
é uma grande mentira.



 







As dores do Mundo

Tenho dores na Terra toda
como se cada extremo
do meu corpo em cruz
fosse um ponto cardeal.




 


 Foto do autor do texto





 
 
O que esquecemos

Acabamos por esquecer as ideias
depois esquecemos as palavras
com que falávamos das ideias
depois é o obscuro jazente
na base da aparente luz

e aos poucos 
vamos esquecendo os outros
até nos esquecermos também 
de nós próprios 

acabamos por esquecer tudo ___
___ até esquecermos
que estamos sozinhos 
e que é por isso que esquecemos
as ideias e as palavras.



 


 Foto de Ana Catarina Duarte





Meditação de desamor

ou talvez não 


Entre a memória que tenho de ti

e a tua foto que aqui ficou

escolho a foto


assim apago o som das tuas palavras

que ficaram no verso da tua imagem


prefiro a tua aparência 

em vez da tua verdade viva

és um nome esquecido

já sou o único a saber da tua existência.



 







Estou vigilante

Padeço 

de uma tristeza intermitente

de uma dúvida dia sim dia não 

de um medo inconsciente

do conformismo de um velho órfão 

da contrariedade de um exilado voluntário 

da nostalgia de ter perdido dois belos seios 

de uma obscuridade tardia. 

A minha cabeça é o lugar certo

para germinarem muitas incertezas ___

___ estou de vigia à minha memória.

 





 Foto de Ana Catarina Duarte






Ensaio

Não te abandonarei
viverei para além do razoável 
viverei para sempre
para poder ser
a tua mesa
a tua cama
a tua música 
a fonte onde vais beber

o teu sossego eterno


Apesar da inutilidade da vida
acabarei por ficar
como se te esperasse
numa rua deserta

Foi isto que ensaiei frente ao espelho
para o último papel
da representação neste teatro
que dizem que a vida é.


 





 
Estou em construção 

Ignoras ao que venho

___ nas mãos trago

       o desejo

___ no olhar trago

       tudo o que reconheço 


Ignoras ao que venho

___ de ti preciso apenas

       que acabes de me construir.

 


 






 
Petite Fleur

O teu corpo é de um branco rosado 
o primeiro e maravilhoso corpo
o primeiro olhar
o primeiro medo
com o medo que se tem do desconhecido
a vertigem
a minha vertigem ___ não a tua
os clarões no olhar
no meu olhar apenas
o desejo
o desejo que se confunde que se esfuma
com a consumação rápida ___
___ antes da fuga
depois a vaidade de um feito
adulto
com contornos de transgressão. 
E o dia seguinte ___ luminoso ___ maior
a memória sensual
do lugar recôndito do teu corpo branco rosado
onde passou a germinar o meu desejo
e onde se esconde um corvo negro. 
 
Só se sente a falta do que se conhece
sorrio ao som de Petite Fleur
a mesma música daquele dia.





 

 


 Foto do autor do texto







Aí ___ é dia

Abre-me a tua porta
é noite cá fora
mas dentro do teu corpo
ainda é dia.