Foto de  O TURISMO. PT



Vem


Segue-me de perto

altera o teu caminho mas vem

assim saberás 

por que caminhos me vou

por que paisagens me perco. 

A natureza tem a palavra e eu 

ouço as notícias que me chegam ___

___ sobre o naufrágio da nobreza de espírito 

sobre a escassez da honestidade

sobre o encantamento da violência. 

Segue-me

vem ouvir os Carrilhões de Mafra

depois decidimos

onde vamos voltar a nascer.




Foto do autor do texto tomada do documentário VIDA SELVAGEM 



A imprevisível loucura

A inesperada razão de um regresso

sem nada de original a empurrar a vontade. 

A coincidente chegada da chuva 

fustigando a minha casa num ruído contínuo, 

os lábios do tempo a murmurarem 

os números dos dias e a sua finitude urgente, 

nas paredes as aguarelas de quando 

tudo era erguido com entusiasmo 

em que loucura era vibração, 

música, 

sentimento. 


O regresso às páginas marcadas 

dos vários livros interrompidos 

fechados pela mão branca da doença 

e o regresso sem nada de original 

à loucura obscura deste tempo alvoroçado 

que não previ. 

Terei tempo para recolher os gestos 

das paredes vencidas pela demora

que a matéria leva na sua transformação. 


Sento-me à porta da minha casa 

e sorrio a ver partir as andorinhas.



Foto de Ana Luís Rodrigues



Serei o teu vestido


Posso ser se quiseres o vestido que desejas 

assim te vistas de mim

que tomarei a cor e o talhe que pretendes 

tomarei o molde do teu peito 

cobrirei com costuras reforçadas 

as tuas formas ___ os teus lugares misteriosos onde me aventuro 

quando a tua respiração está de feição 

e a tempestade se torna uma brisa 


serei o teu vestido 

e de tanto me afeiçoar ao teu corpo 

aos teus lugares mais íntimos 

serei a figura de um homem em forma de vestido 

que mantém em segredo o lugar onde se converte 

correndo o risco de passar de moda.




Foto de Brasil ESCOLA



Poemas da minha infância


Gafanhoto


Porque foge o gafanhoto de um abraço

que lhe quero dar? 

Tem medo

mas eu só lhe daria um abraço 

com a ponta dos dedos

ou será que quer que eu salte com ele?




Foto do autor do texto


 

Este ofício de viver


Está escura a noite, mais escura

do que as outras noites. 

Eu, 

sentado à mesa do desejo

tive de escolher a noite

para não ter que me debater

na inconsistência dos dias

contra as promessas

contra o esquecimento. 

Copio de um poeta um verso

    as coisas como foram

e sem erguer a voz

evoco aquele outono

inesperado

impaciente

indefinido

que nos informa que

neste ofício de viver

tudo é transitório. 

É por isso urgente reviver 

a beleza da nossa infância

e fazer do desejo uma mão-cheia de flores.







Uma visita sessenta anos depois


A casa da minha infância 

revejo-a. 

Porque se tornou tão pequena

desde que ficou sem mim? 

O cheiro, 

a luz que escorre das paredes, 

os sons

são desconhecidos, agora. 

A nespereira outrora tão alta

dar-me-ia os seus frutos à mão 

assim me reconhecesse. 

Ninguém sabe quem eu sou

nem a casa, 

nem a nespereira,

nem os que lá moram ___

___ nem o limoeiro 

que plantei a brincar. 

É a minha infância cercada

na minha memória. 

Este foi o meu tempo

este é o meu tempo. 

Estremeço. 


Venham ver! 

Só as andorinhas são as mesmas!



Foto Google Maps




Foto do autor do texto



O tempo estranho


Como é estranho o tempo aqui 


durante décadas em segredo 

relembrei que em tudo há um início 

e que a minha morte já começou 

está tudo nos papéis desirmanados 

que te dei a guardar 

onde deixei as minhas mãos 

as minhas outras várias mãos


Como é estranho o tempo aqui 


durante décadas em segredo

rasurei os olhares velhos 

que deixei crescer sem medida 

porque os olhares se querem límpidos 

sobre as crónicas da nossa vida 

onde deixei os meus olhos

os meus outros vários olhos


Como é estranho o tempo aqui 


durante décadas em segredo

vi que há sempre fumo ao longe 

e que é urgente a meditação 

sei como será violento 

fechar este caderno para sempre

ficar sem boca

e sem palavras. 








Sem explicação 


Explico a vida 

com um sorriso antigo, desusado. 

Explico a vida 

com os dedos entrelaçados na própria vida. 

Explico a vida 

com a beleza terna, maternal. 

Explico a vida 

com a ambição de ser entendido 

em todas as cidades amigas e inimigas. 

Explico a vida 

com a música e o seu poder de não ser igual 

em ti e em mim. 

A explicação da vida é confusa 

e nascer é como abrir uma porta às escuras.