Foto de Daniel Filipe Rodrigues




Há sempre um piano ao fundo

a soar sobre o meu silêncio 


Ao silêncio que me é imposto

imponho-lhe um piano


o silêncio torna-se mais profundo

junto-lhe um violino ___ suave


digo então ao silêncio que

é preciso enganar o tempo ___ sem demora


o silêncio senta-se ao piano calado

rende-se o violino ao silêncio 


e o silêncio experiente sorri

por eu ser um aprendiz do tempo


só os génios cavalgam o tempo

e nunca serão vencidos pelo silêncio


Há sempre um piano ao fundo 

a soar sobre o meu silêncio.






 Foto do autor do texto tomada do documentário VIDA SELVAGEM



A tristeza

(uma tentativa de definição) 


A tristeza será talvez como uma ave

que se aprisionou na gaiola da nossa mente

será talvez uma ave cantando baixo

na cavidade sombria do nosso ser

será talvez uma ave que se alimenta

sôfrega da nossa reserva de flores

A tristeza será talvez como uma ave

a quem abrimos a gaiola mas que sempre volta.




 



 Foto do autor do texto




Cigana precisa-se


Do que eu precisava agora 

era de saber o meu futuro

nada de mais

já é tão pouco o que aí vem

Do que eu precisava agora

era de uma cigana

prática na área da adivinhação 

precisava da sua ladainha ___

___ sem compromisso 

e que me pedisse um fio de ouro

para as rezas ___ para 

a sua profecia ser mais credível 

que eu recusaria 

por não ser dado a exibicionismos

ainda assim as palavras cantadas

seriam cristais ___ luz ___ amor 

        

Depois vendia-me uma romã 

que eu desfolharia em maravilhosos

rubis ___ a minha pedra da sorte

certamente 

estavam criadas as condições 

para ser feliz com o que aí vem.




 

Foto do autor do texto 




Este abrigo

Está agreste a noite

tudo é frio 

neste nosso abrigo de papel

todo construído sobre cartas

escritos insensatos

isentos da coragem

de dizer a verdade


Uma união que não passou

de palavras desenhadas

em papéis de linhas ténues 

intervaladas de dias de angústia 

Nunca as nossas mãos 

ou os nossos olhos 

se tocaram realmente a não ser

por interpostos lugares escritos

comparável 

à sensação de que se esteve

numa cidade que existe de facto

mas cuja nossa memória 

recorda de tal maneira modelada 

ao nosso sentir

que essa cidade ___ decerto

nunca existiu


Nada aconteceu afinal ___

___ foi apenas

a construção deste abrigo de papel

___ está agreste a noite

tudo está frio

e os girassóis cegaram.




 


Foto de OBSERVATÓRIO DO TERCEIRO SETOR






 Foto do autor do texto




O pão do desejo


Sobre a mesa o pão da luxúria 

barrado com sensuais palavras 

necessárias e suficientemente doces

meto entre duas fatias um poema ___

___ já deixei sobre a cama o desejo

e tenho no céu da boca

várias estrelas a cintilar

que te entregarei

com a minha língua a festejar.







 Foto do autor do texto




Os papéis da discórdia 


As palavras estavam connosco

sentadas à mesa no chá da concórdia 

as palavras serviam-se

a elas próprias em reverências estranhas 

porque tinham consoantes agrestes 

e arrastadas encostadas a vogais

numa musicalidade metálica 


e nós sorridentes dávamos a boca 

às palavras como se nos beijássemos 

nenhum de nós acreditava

na falência dos sentimentos

com palavras tão concordantes

sentadas à nossa mesa

no chá da concórdia 


Ninguém diria que este chá 

e as palavras de concórdia 

seriam as últimas ___

___ na mesa os papéis da discórdia 

ardiam de palavras incendiadas 

esperando pelas mãos que

os assinassem como uma sentença.