A ti, deixo-te tudo
 só não te deixo tudo o que sonhei
 porque é lá que vou viver,
 só não te deixo as vozes dos que me são queridos
 porque com eles quero falar depois,
 só não te deixo as imagens dos meus filhos
 porque terão lugar no lugar da minha cegueira,
 só não te deixo os sons que me comovem
 porque preciso de cor no fim de tudo.
 Ficarás com tudo o que era meu
 só não ficarás com as minhas mãos
 porque de tanto procurarem nunca se encontraram,
 só não ficarás com o meu olhar
 porque só eu sei de onde vem a minha luz,
 só não ficarás com a minha voz
 porque repetidamente direi o meu nome, 
 só não ficarás com a minha angústia
 porque a guardarei como sabedoria.
 Mas a ti,
 deixo-te tudo.




Estás agora mais perto da minha cabeça 
tenho a tua foto à cabeceira
e olho-te. 
Do que gosto na tua nudez
é desse mapa do deserto
a norte as dunas que são o que mais me impressiona, 
depois a planura e o poço da vida. 
E percorro dedo a dedo o caminho para o abismo
das grutas antes dos istmos
e regresso ofegante ao princípio de tudo, 
a boca. 
Apago a luz e deixo de te ver.




Hoje estava uma manhã como as outras
talvez mais cinzenta de uma tonalidade cruel, 
entrei no café do costume mais escuro do que era costume
com uma luz fluorescente alta que tossia intermitentemente, 
pedi tudo como era costume e o som das louças
no choque com o vidro do balcão rimava 
com as moedas soltas de um troco alheio. 
Quatro mesas redondas abandonadas excepto uma
a do canto mais longe, tão longe quantos os passos passados
e a única iluminada por uma luz vinda de lado nenhum. 
Lá estava a minha mãe ausente há mais de trinta anos. 





A memória é um campo de batalha de onde saímos acossados.




Os desgostos, os arrependimentos, os sentimentos de culpa só existem enquanto houver passado, assim como as alegrias e os momentos de felicidade só existem quando há presente.




Quando os amantes, já mais velhos, se olham depois de se amarem, há uma certa condescendência no seu olhar.




Hoje vi na praia uma mulher que chorava e as suas lágrimas, como peixes de prata, desaguavam no chão de areia que as sugava para voltarem ao mar.




Obrigado pelo saco com pão que todos os dias deixas à minha porta.




Vou para o sul como se tivesse norte
 cruzo-me contigo mas não me reconheces
 - sou eu, este é o meu outro nome!
 digo.
 Fiz tudo sozinho indo sempre para sul
 esse era o meu caminho, 
 grito-te o meu outro nome no eco de uma rua vazia
 mas não me reconheces. 
 Falo para ti mesmo quando tu não estás
 e continuo a caminhar
 para o reencontro impossível.
 Este é o meu outro nome e é quase certo que
 não me vais reconhecer.
 Voltarei com este nome nas palavras dos outros
 e, finalmente
 saberás quem sou.





Aceito a tua chegada
embora te queira cada vez mais tarde.
Conheço-te
já te vi ao longe
quando te encontraste com os meus pais
a minha irmã
e alguns dos meus amigos
os melhores
os que gostariam
que nunca me conhecesses.
Mas conheço-te
já me cruzei contigo
quando morei numa das casas
onde habitas
mas não reparaste em mim
estavas ocupada com outros.
Sei que virás
tão certo como a minha vontade
 de que não venhas.
 Posso passar sem ti
 mas sei que tu não podes
 passar sem mim.
Quando vieres dá-me um sinal
para que possa preparar tudo
para a tua chegada
dá-me um sinal
do qual eu não possa duvidar
porque todos me dirão
que não és tu que anuncias a chegada.
Peço-te
 que não venhas
 quando estiver sozinho
 quero estar acompanhado
 mas não te apresentarei
 àqueles de quem gosto
quero-te só para mim.
 Vem
 mas não digas ao que vens
não é necessário
 todos vão perceber
 quando te pressentirem.
 Peço-te
 que venhas no momento
 da visita dos meus filhos
 embora eles não queiram ouvir falar de ti
quando ouso referir o teu nome
 há sempre alguém
 que me pede para me calar
 como se fosses uma invenção minha.
 Todos te conhecem mas
 todos fingem ignorar-te
 tal é a tua fama
 e o desprezo que inspiras.
 Os que gostam de mim
 levarão tempo a suster uma lágrima
 quando se lembrarem que parti contigo
 e comentarão
 como foi possível,
 já que és tão feia e tens tão má fama,
 sabem que és cruel e que por vezes 
 fazes sofrer aqueles que desejas.
 Durante uns tempos
 alguns dirão
 que fui contigo por fraqueza minha
 e que essa fraqueza
 te fez acreditar que eu queria
 ir contigo.
 Tu sabes a força que tens,
 como és persistente
e te sentas sobre a vida
 à espera do melhor momento.
 Vou
 mas nunca falarei contigo
 e jamais direi o teu nome.





Um artista estava mergulhado na angústia, 
no início não passava de um zumbido
depois um turbilhão
e logo uma explosão
que projectou fragmentos da sua cabeça
contra as paredes do atelier.
Então...
... uma voz assomou ao que restava dele:
- Bom dia pai!




Se queres morrer porque tens dúvidas se queres viver,
se a dor que te abala já não te dói e a mão que assina
já se calou.
Se queres morrer porque tens dúvidas se queres viver,
se repetes agora os cânticos dos outros
e as tuas palavras inventadas na dor elas próprias
já morreram.
Se queres morrer porque tens dúvidas se queres viver
desfaz a cama onde a memória dorme
e torna-te um clandestino.




E por sobre a minha janela
voavam pássaros em fuga, 
rumor ao longe
o vento empurrava-os. 
Fugi também.




Um dos mais altos de todos deu a orientação:

-amanhã faremos filas por alturas,
os mais pequenos à frente, 
todos terão de marchar certinhos, 
os maiores vigiarão os mais pequenos e assim sucessivamente. 

Ao longo do tempo, 
os mais pequenos que não caminhavam ao compasso 
foram sendo excluídos pelos maiores 
e passados para a última fila atrás de todos.
Uns por serem velhos,
outros por serem desajeitados,
outros por não quererem acertar o passo
foram enviados mais para trás até não restarem mais 
do que os que eram da última fila
todos do mesmo tamanho, os maiores.
Então,
todos os mais pequenos que eram muito mais numerosos,
para não caírem na mesma situação 
escolheram de entre eles o que passaria a dar a orientação. 
Esse determinou com o acordo dos restantes,
que os mais altos dos mais altos,
que eram agora os excluídos 
seguiriam à frente e marchariam certinhos
caso contrário seriam excluídos … 
para sempre.




Há noites em que se tem saudades de tudo.
Essas saudades insinuam-se nos nossos sonhos
e tanto sonhamos com a aflição de alguém em fuga
ou com o desgosto de uma traição, como sonhamos
com uma felicidade desconhecida que não sabemos
de onde vem. Neste caso, quando acordamos,
ainda sentimos no ar o perfume de quem passou pelo nosso sono.




Uma vez por ano juntavam-se todos.
De entre eles escolhiam o mais velho.
Despediam-se
e esse agia conforme o combinado.
Ingeria a sua dose,
contorcia-se e morria.
Por mais uma vez ficavam com a certeza
de que estavam a contrariar a natureza, o destino, Deus …




O que quero é apenas
ver-te
sem roupa, 
ver o brilho da tua pele, 
a parte mais branca dos teus seios, 
o círculo rosado
com os escuros pontos em sobressalto, 
dois montes antes
de chegar à planície 
de onde vejo o abismo
para o meio das tuas pernas. 
Ficarei apenas a contemplar-te
não te tocarei, prometo, 
porque sei que esse desejado momento
seria o primeiro do fim de tudo.




O dia inteiro em roupão,
não cego mas embaçado,
quase surdo escuta os sons
como no alto de uma montanha,
dias e dias sentado num cadeirão,
quase não come só bebe,
o tubo de soro fincado no braço.
Que prazer, que único prazer ainda
deixar-se inundar
por aquele mar
de urina quente.