Um homem sente um grande conforto para o seu intelecto
com o piano de Maria João Pires
O homem está sentado na sua vida sem conforto
agora que está sozinho depois do falecimento
daquela com quem se sentava à mesa e com quem falava
acreditavam nas palavras como alimento do destino de ambos
depois do falecimento daquela com quem se deitava na cama
acreditavam que na mistura dos corpos se perpetuava a vida
o homem está sentado na sua vida com a vertigem da solidão
tenta apagar o nome da mulher das suas mãos
agora está sentado na sua vida sem conforto
e com o desejo a rastejar no interior do ventre
o homem passou a sentir os seus dias como uma ferida
e por isso pensou cortar as condutas do sangue do seu corpo
num sítio fatal como se pudesse assim viajar até ao país dos mortos
onde decerto estava aquela
com quem comia à mesa do destino
e se deitava na cama do tempo
ela era quem guardava o seu desejo
no lugar recôndito do seu corpo de mulher
ela era quem guardava a sua melancolia que trazia desde a infância
causada pela triste ausência das palavras da sua mãe
agora o homem está sentado na sua vida
ouve um piano que abre uma brecha na melancolia
que agora não tem lugar onde guardar
e isso é confortável para ele ___ o medo da solidão interrompe-se
embora ele saiba que voltará a suar de pânico
o som do piano é um conforto para o seu intelecto
ele esqueceu-se do início da noite porque está a meio da tarde
e ouve o piano
o homem é agora um sucedâneo de si próprio
ele sente o conforto de já não ter de esperar nada
nem amor nem amizade nem o romper da virgindade
o homem adormece ao som do piano
enrugado ___ sem cabelo e com os lábios roxos.