Foto do autor do texto


Um homem sente um grande conforto para o seu intelecto 

com o piano de Maria João Pires 


O homem está sentado na sua vida sem conforto 

agora que está sozinho depois do falecimento 

daquela com quem se sentava à mesa e com quem falava

acreditavam nas palavras como alimento do destino de ambos 

depois do falecimento daquela com quem se deitava na cama 

acreditavam que na mistura dos corpos se perpetuava a vida 

o homem está sentado na sua vida com a vertigem da solidão 

tenta apagar o nome da mulher das suas mãos

agora está sentado na sua vida sem conforto 

e com o desejo a rastejar no interior do ventre

o homem passou a sentir os seus dias como uma ferida 

e por isso pensou cortar as condutas do sangue do seu corpo 

num sítio fatal como se pudesse assim viajar até ao país dos mortos 

onde decerto estava aquela  

com quem comia à mesa do destino 

e se deitava na cama do tempo 

ela era quem guardava o seu desejo 

no lugar recôndito do seu corpo de mulher

ela era quem guardava a sua melancolia que trazia desde a infância 

causada pela triste ausência das palavras da sua mãe 


agora o homem está sentado na sua vida

ouve um piano que abre uma brecha na melancolia 

que agora não tem lugar onde guardar

e isso é confortável para ele ___ o medo da solidão interrompe-se 

embora ele saiba que voltará a suar de pânico 

o som do piano é um conforto para o seu intelecto

ele esqueceu-se do início da noite porque está a meio da tarde 

e ouve o piano

o homem é agora um sucedâneo de si próprio 

ele sente o conforto de já não ter de esperar nada

nem amor nem amizade nem o romper da virgindade

o homem adormece ao som do piano

enrugado ___ sem cabelo e com os lábios roxos.


 



 


Foto do autor do texto




O invejado e o invejoso


 A inveja não muda o dia-a-dia do invejado

só torna venenosa a vida do invejoso.





Foto do autor do texto



Para me perpetuar em ti


Armo-te ciladas sentimentais


     chego tarde para que me desejes mais

     cerco-te com o olhar para te seduzir

     simulo que adormeço para julgares

     que a noite acabou

     pinto um vermelho de batom na camisa

     para avaliar o teu ciúme 

     finjo-me morto para me impressionar

     com a tua aflição 


depois concebo um filho no teu lugar fecundo

para me perpetuar em ti.



 




Antes de partir


No lugar mais vazio das minhas entranhas

acomodei uma certa ambiguidade 

das promessas que me fizeram

por ser aí também o lugar 

mais vazio da minha consciência 

ficou-me um estranho e angustiante

prazer no desencontro com o previsível ___

___ com as feridas ainda intactas

finda a peleja da dúvida sobre a dúvida

percorro o campo de batalha

colhendo os despojos


antes de partir cerco-te com o olhar.



 

Foto do autor do texto



O meu desejo


O teu corpo é a terra

onde lavro o meu desejo 

por todas as mulheres do mundo

assim tu compreendas quando 

chego exuberante e sem recusas

antes do sono comum


amo em ti

todas as mulheres do mundo

assim tu queiras ser

todas as mulheres do mundo

e compreendas este adeus 

que dura apenas um dia


o meu desejo tem fim

a minha ansiedade acabou

tens ainda o mesmo nome

conheces a minha nudez

por isso continuo a amar em ti

todas as mulheres do mundo.




 

Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Cinquenta Abris


Trago no bolso um cravo

e na boca uma revolução 

se agredirem a minha liberdade

saco do cravo

carregado de vermelho e perfume

e disparo as minhas convicções 

de Abril adulto

     cinquenta mais cinquenta

     de Abris para sempre! 

gritarei antes de ser atingido.





Foto de Daniel Filipe Rodrigues



Perdoa a minha incompetência 


Sento-me à mesa de um café 

e escrevo-te uma carta para me justificar

    

Por justiça obrigo-me a dizer-te

sou o exilado voluntário 

sou a sentinela sem turno fixo

sou o que emudece por conveniência 

sou o encarcerado por loucura

sou a voz persistente na noite tempestuosa 

sou a cerejeira carregada para teu prazer da colheita

sou o bandoneon de Piazzolla

pedes-me ainda que seja

a Muralha da China

o Arco do Triunfo

os canais de Veneza

venho então confessar-te não ter competência 

encerro por isso a minha carta pedindo perdão. 


e fico-me por um chá bem quente

e uma torrada com pouca manteiga.



 




A angústia do pintor


A economia na cor

uma paleta curta

o cansaço 

a falta de palavras

nas mãos 

na pintura

o pintor abandona o quadro

o cansaço 


o pintor morre como pintor

e o quadro 

acaba-se a ele próprio 

à vista do pintor.



 

Foto do autor do texto



O fragmento de deus


Deixaram à minha porta um fragmento de deus

não sei o que fazer com esta dízima 

já que nem a um deus inteiro tenho direito

cardeais

bispos

e argentários

tomarão os paramentos debruados a ouro

levando pela mão as irmãs da caridade 

desfilarão por entre nós os de joelhos 

que rezam e mastigam o fragmento 

mais duro do corpo de deus

que deixaram à nossa porta


uma voz diz

     assim seja 

e salpicam-nos a cara com gotas de água benta.