Foto do autor do texto tomada do documentário VIDA SELVAGEM




 

Alerta

Cada dia inventam o que já foi inventado
discursos de boca cheia
de cuspo em bolas de sabão coloridas
que rebentam nos órgãos de gritaria

que entram pela nossa casa dentro


Cada dia inventam

a pobreza

a revolta 

e a anestesia

ministrada aos que em filas intermináveis 

esperam pela sua dose ___ exultando


Que inquietante é o sono dos justos.




 


 Foto do autor do texto




O coração dos amantes


Embevecidos os amantes 

nunca acertaram 

os desfasamentos

da idade 

não confessaram as rugas 

futuras um do outro 


e um dia um dos amantes

diz que o outro já tem 

mais cinquenta rugas na idade 

e que isso o impede 

de ter um carro novo 

uma casa nova 

um amante novo 


É preciso que os poetas 

dêem voz às vítimas

das partes odiosas

do coração dos amantes 

aos que já tem rugas mortais 

na língua 

que os impede da denúncia 

e de saírem 

dos escombros com vida.




 


 Foto de Daniel Filipe Rodrigues




Invento com as palavras 


Vou construir uma casa

não precisa de ser grande ___

___ apenas onde caiba um clarão 

que ilumine um último sonho 


o caminho até à porta será 

feito pelos caminhantes

e pela sua insistência 

pouco importa o lugar ___

___ farei também a paisagem

de um lado o silêncio do deserto

nas dunas de Erg Chebbi

do outro a brisa de Espanha

nos moinhos de Campo de Criptana


a casa será erguida 

com as paredes do sono

janelas e portas de segredos

que só eu abrirei

o telhado um suporte da tristeza

que enfrentará a clemência do tempo

terá uma chaminé alta ___

___ muito alta

por onde se esfumarão os desejos ___

___ todos os desejos 

sobretudo os do corpo


Depois

numa certa manhã acordado 

entre o silêncio do deserto

e a brisa de Espanha

sentar-me-ei à janela de um segredo

e ficarei à tua espera ___ para sempre

porque tudo será invenção das palavras.




 


 Foto de Daniel Filipe Rodrigues 
sobre uma escultura de Alicia Martin Villanueva




Abraçar o tempo


Poderemos nós abraçar o tempo

com braços sem memória ___

___ ou os pensamentos descarnados

não permitem os abraços? 


Será inevitável que para a paz dos abraços 

tenhamos que escrever o passado 

em letras menores ___

___ ou o tumulto causado pelas maiúsculas 

dos nomes mais sombrios

não permitem os abraços? 


Poderemos nós abraçar o tempo

ou é o tempo que nos abraça a nós?









Saudade ___ é do que falo


Passaram muitos anos muitas décadas 

e meias décadas de tropeços em Paris

quero por isso falar-te de saudade

não do sentimento medido em lágrimas 

em cartas que nunca chegam

ou fotografias antigas e roucas


mas da saudade que me excita ___

___ de uma panela de sopa a ferver

dos copos vazios até ao sono

até amanhã para serem de novo cheios

do cesto da roupa para lavar

a tua roupa íntima ___ também 

das cassetes com as vozes de todos

desde o balbuceio até ao cântico 


Quero por isso falar-te de saudade

do depósito poético cheio de ervas daninhas

das pontes sobre os rios revoltos

dos mapas mórbidos e velhos

da notabilidade adiada

para o tempo dos meus filhos e netos ___

___ depois 

senta-te e olha os céus de Paris

vou-me numa nuvem ___ lentamente. 




 Foto do autor do texto 









 


 Foto de Quetzal Editores





A respeito da vida *


Percorro as vielas de Sintra

estou só e assim me acompanho

dos meus pensamentos ___

___ pensando ___ pensando


a existência ainda não passa 

de uma faca de letras

numa página em branco dado que 

a vida é uma sucessão de disparates 

coisas com pouco sentido

uma incoerência sem rumo

a não ser o caminho para o fim


pobre e ilegítimo vou passeando

pelas estreitas vielas da vila

pelas estreitas vielas da vida

com os meus pensamentos 

agrestes ___ insolentes ___ orgulhosos

nem padres

nem governantes

nem premiadores


estou em Sintra

gostaria ainda de ir ver o mar 

antes de administrar a minha morte

não digam que me encontraram 

na Piriquita. 


 

* Inspirado em Thomas Bernhard  

e em algumas das suas palavras