Foto de Daniel Filipe Rodrigues



A violinista

Cabelo curto a envolver
a beleza do grande talento
braços firmes em arco
convergentes na descoberta dos sons
mão esquerda tremendo nas cordas
marcando o tempo da minha emoção 
peito equilibrado na dimensão certa
da minha respiração 
costas verticais sem apoio
refletindo os sons que me alcançam 
ao meu chamamento

ou fui eu que respondi
fiquei-me na contemplação 
do som da tua imagem
que é uma parte da verdade
a outra parte é o que eu penso. 








Fica longe a minha cidade 
à beira-mar
onde um inútil farol brilha e ruge
aqui é noite durante o dia
e o exílio 
fica em outro meridiano da alma
que nenhum farol orienta. 








Sou mais fraco do que tu
o meu coração tem dores 
quando ouve certas palavras
ele tem medo de deixar de bater 
por ti.




 

Foto do autor do texto



Voltaram a ser virgens as minhas mãos 
ficaram sem memória 
já não têm corpos por entre os dedos.





Foto de Ana Luís Rodrigues



Chamo-te na infeliz ideia
de que ainda estás aí 
na irreal ideia
de que ainda resistes
que lugar desconhecido
estarás a descobrir ___ agora 

aqui estão as cores do vitral
que se projecta nas lajes que pisaste
e um órgão lento
preenche o silêncio vago
na sombra dos mármores 
inscrições ilegíveis 
nomes
datas
versos de cânticos 
frases de arrependimento 
na escuridão cabelos tangem
o meu rosto num momento breve

depois disto haverá decerto
um grande mar
onde o céu se liga à terra
irei até onde o sol me deixar
e tudo será passado.






Reconheço-te na justiça do tempo
que desenhou o inverno na tua boca
com a justiça que o tempo
sempre tem sobre os que mentem

reconheço-te na mentira do cabelo
que continua negro
quando o branco é a verdade
porque vives já noutro século 

reconheço-te na mentira usual
dos que mentem pelo tempo fora
quando tentam ignorar o passado
mentindo a si próprios 

reconheço-te vinda de uma ilha
com a cor expressa no rosto
e palavras diferentes deslumbrantes
que nenhuma mentira pode negar

reconheço-te quando mentes 
que não me reconheces
para não denunciares uma mentira antiga
que ambos sabemos que foi verdade

um mentiroso é uma ínsula 
a afastar-se de si próprio 
com a memória amordaçada.



Foto do autor do texto



Pouco importa que o trabalho poético 
faça desabar as lágrimas 
que trazemos na vontade oprimida 
sem nunca fazerem o caminho natural
face abaixo em direcção à boca

pouco importa que tudo se desenvolva
em palavras e mais palavras 
e que o poema se revele
nostálgico 
revolucionário 
resignado
violento
não mudará as feições do mundo
não levará a luz às minas
não acalmará os mares 
não tornará fértil a terra

a poesia faz-se para iludir os poetas
a poesia existe para ser ignorada. 


 


Foto do autor do texto tomada do canal Mezzo



Chegas obscura 
carregada de tempo e de odores antigos
cerro os olhos e tombo a cabeça para trás 
não há regressos ao passado
adormeço ___ ou morro por instantes.







As partidas são a interrupção 
do decurso normal das nossas vidas

como me incomoda o som
do vai-e-vem do elevador que passa 
lentamente pelo piso do apartamento 
sempre fico ansioso esperando que pare
quando me ignora digo
Paris Paris Paris
para te influenciar lá longe
e acendo mais um cigarro
antes da tua memória se consumir
no meu sangue em chamas
como o meu Gitanes se consome
tanto que já não existe mais  
 
um Gitanes e a noite
ensinam-me a solidão 
e o elevador que não pára! 


 


 



Lorca

De nada te serviu o nome
o teu destino em nada foi diferente 
dos que também foram homenageados
de encontro aos muros brancos
com balas iguais às que guardaste 
no teu peito inflado de poesia
o nome foi a tua culpa
de nada te serviu seres poeta
a poesia não apazigua corações 
calejados pela ausência 
de lágrimas 
de apelos
de rogos
com fogo rasuraram as palavras 
que trazias tatuadas na alma
dobraste os joelhos
e sorriste para a terra
antes de a beijares 
 
continuas vivo por sobre
os que te mataram
marcaste-os com dois claveles


Lorca

El nombre no te sirvió de nada
tu destino no fue diferente
de los que también fueron honrados
contra paredes blancas
con balas como las que salvaste
en tu pecho hinchado de poesía
el nombre era tu culpa
no valía la pena ser poeta
la poesía no alivia los corazones
encallecidos por la ausencia
de lágrimas
de súplicas
de oraciones
con fuego borraron las palabras
que habías tatuado en tu alma
doblaste las rodillas
y sonreías a la tierra
antes de besarla
 
sigues vivo
los que te mataron
los marcaste con dos claveles. 


 


Foto do autor do texto



Abre-se a porta para o nada
e o nada é tudo o que se tem
um vulto caminha
devagar recolhendo minutos
como se fosse o inventor do tempo
um equívoco 
entre a noite e o dia
onde afinal nada existe
o vulto dilui-se na própria sombra 
que se projecta no chão passo a passo
consumindo os minutos
antes que não seja dia nem noite.


 


Foto do autor do texto



Lembras-te do sino 
nas manhãs de domingo
ainda com as portadas da noite fechadas
no momento em que a nossa pele
se casava na penumbra? 

era Outono 
mas o suor escoava-se pelo teu peito
e o som do sino da igreja da aldeia
marcava o nosso compasso
oito
nove
dez
a manhã cumpria-se 
na nossa vertigem comum que
acabava num breve pó de estrelas

lembras-te do sino 
na manhã do primeiro domingo
em que nasceste naquele lençol branco
quando era Outono
e uma lâmina de luz
que as portadas permitiam
se traçava entre o teu peito? 

nesse dia inventaste o meu rosto
que para sempre ficou o mesmo
até já não me reconhecer nele
de tanto tempo depois

valeu a pena o sangue quente
em que fiquei a arder serenamente
com o coração a bater ao compasso
do som do sino da igreja da aldeia
oito
nove 
dez
e mais sons sem fim até se cumprir 
a poesia de um lugar que nunca existiu.


Poema de amor e memória 
do amante consumido no seu próprio lume 
observado de longe a arder serenamente 
depois de feito o poema. 


 


Foto do autor do texto 


 

Ponderados os prós e os contras
decido ficar sentado à sombra
da nespereira do meu quintal
da cidade da minha infância 
tudo numa fotografia antiga

ponderados os prós e os contras
decido ficar sentado na minha infância 
numa sombra da cidade onde ficava
a nespereira do meu quintal
tudo numa ideia antiga

ponderados os prós e os contras
decido não esquecer aquele momento
da minha infância no quintal da casa 
da nespereira na minha cidade 
tudo num momento antigo

se eu pudesse ___ agora
pedia que me levassem ao quintal
da minha cidade para abraçar 
a nespereira da minha infância 
à sombra do meu passado

ponderados os prós e os contras
decido ficar entre a nostalgia
e a loucura da minha infância 
numa foto antiga preparando-me
para nascer outra vez.


 


Foto do autor do texto



Encontrei fechada aquela porta
a porta que sempre se abria
quando eu chegava num rasto de luz
compreendi então que há portas
que de tantas vezes se abrirem
cegam de tanta claridade 
e um dia fecham-se para sempre
sem critério 
sem saudade

ainda falámos 
na reconstrução da nossa casa
como se não quiséssemos perceber
que já não estávamos juntos
há muito tempo
aceitámos a sua demolição 
e dividimos o resto da nossa paisagem.


 


Foto do autor do texto tomada do documentário VIDA SELVAGEM



Medimos o tempo 
pela nossa morte
desde o dia 
em que nos tomaram
no primeiro colo ___ frágeis 
mas fortes na vontade de vida
até ao dia em que 
trocámos de colo
e tomámos consciência 
de que um suspiro 
é como uma ave que voa
da boca da nossa mãe.