IA


Apresentas-te na tua importância 
sob um chapéu de abas largas
dourado de palha legítima 
como tripulante de um disco que voa
vindo do desconhecido do universo

como se eu acreditasse
que trazes voos na cabeça 
como tripulante de um disco que voa
___ aqui não há campos de aterragem
volta para o teu lugar longe no universo. 


 

Foto de Daniel Filipe Rodrigues


Recolho-me no que parece uma gruta
em pleno descampado desabitado
um lugar em que as árvores se moveram
e se curvaram perante o silêncio
um túnel de sombra acolhe os passos
da água que se ilumina em fatias de luz
neste lugar o tempo respira lentamente 
e há um rumor surdo das pedras
uma brisa murmura coisas que esqueci

o meu corpo torna-se ausente
como se flutuasse no eco da terra
por um momento celebro o silêncio também.


 

IA





Deixaste sombras em todo o caminho 
levaste toda a luz
nas tuas mãos 
e nos teus pés
era ainda tão cedo
na sombra fiquei homem
num corpo de criança. 



 

Foto de Bartolomeu Rodrigues


Hoje foi um dia
em que os acantos não cresceram
em que a água saiu gelada da torneira
em que o telefone não tocou
em que me repeti com palavras rejeitadas

hoje levantei-me
e deixei o sonho na almofada
desconhecia o que o dia me destinava
preferi por isso começar tudo do princípio 
balouçar a vida numa corda
e dar à luz num lugar novo
enquanto ainda era dia. 


 



Gosto de estar sentado à tua mesa
gosto que dividas comigo o teu pão 
prefiro que me dês água em vez de vinho
gosto que digas o meu nome
com a tua mão na minha 
 
convenceste-me que o teu passado
foi o que sobrou da tua vida
e que já nem te lembras como foi
também estás velha
caiu o muro a leste e esquecemos tudo 
 
tenho pena de nós ___ já não temos tempo
para a clemência nem para a indignação 
anunciam-nos o fim do mundo
sem nos dizerem a verdade
estamos cansados
 
crescem-nos asas na voz e no olhar
a nossa casa é todo o mundo
por onde viajamos cantando
por agora dividimos o pão e comemos 
eu à tua mesa e tu à minha.





Marina Abramović e seu ex-amante Ulay, reencontraram-se 20 anos após a separação durante sua performance no MoMA em 2010, onde ela se sentou em silêncio por um minuto com cada estranho que se sentou à sua frente. Sem que Marina soubesse, Ulay apareceu e eles se olharam silenciosamente, capturando o impacto duradouro do amor, do tempo e da arte.


 


Depois de tantas palavras
é tanto o que fica por dizer

     ___ o mistério em nós 
     ou a falta de coragem? ___

pouco importa
com as dores
tudo será esquecido. 



Foto de Bartolomeu Rodrigues


Quando é o momento de te ter
é como se caminhasse da penumbra
em direcção ao lugar onde nasce o sol
caminhando
caminhando
caminhando
até ele se revelar
até ao êxtase da luz

e escrevo a luz em ti. 


 


IA



Há-de chegar o dia
em que te revelarás
e alguma coisa me pedirás

reservo-te
o meu último suspiro. 




Foto do autor do texto


A dormir sonhei
que levaram a minha boca à força 
e a puseram a dizer coisas
como se fosse eu ___
___ eu com a minha boca tão destreinada
na devastação verbal poderia lá 
insultar o mundo e esquecer o homem
escondo-me 
por entre os versos do Tolentino
enquanto espero que o tempo passe
e acreditem em mim

afinal isto é só a sonhar. 


 



IA



O amor é como um refrigerante
depois de aberto e não bebido
perde o gasoso. 



 

Foto do autor do texto



Não posso duvidar de que já nasci
e por muito que me digam
que isto não é vida
eu respiro e sei que respiro
porque o meu peito se move
e tu me falas
com eco na tua voz
com luz no teu contorno
e sangue na tua fronte
por te dizeres rei

tu me convences que já nasci
mas isto não é vida.


 


IA



Foi tarde a tua chegada
foi tão tarde que ceguei
como se não tivesses chegado nunca
ouvi-te apenas nas palavras escritas
páginas e páginas sonoras
sem música 
a que respondo agora 
no meio desta insónia 

e o que te digo é que
poderíamos 
ter sido amigos ou amantes
mas agora
crescem incertas as plantas
nascem duvidosas as flores 
por isso foi tarde a tua chegada
como se não tivesses chegado nunca 

neste momento
o que me preocupa é uma trivialidade
a arte de me pendurar numa gravata
e cego é mais difícil. 



 



Hoje o luar
não entrou pela janela do meu quarto 
corridas as cortinas
tive o poder de escolher a sombra
como se o lado breve do sono
me protegesse do remorso e da angústia 
como se me desse o poder 
de um pequeno deus
de controlar a luz e o pensamento 
 
quando acordo ___ esqueci tudo
e vejo-me a viver 
dentro de uma aguarela de Paris
como se fosse feliz.



 

IA



Naquele tempo
os meus pés eram ainda pequenos de acordo 
com o tamanho do mundo naquele tempo 
mas foi com eles que caminhei
até o mundo se tornar grande
para além do tamanho dos meus pés 

não quero lembrar-me de onde parti
mas estou sempre a pensar de onde parti
sem saber ___ na verdade ___ onde chegar
nada me parece hoje mais incerto
do que julgar que o tamanho dos meus pés 
é à medida do mundo

tenho um desejo muito grande de voltar
a ter os pés pequenos de acordo
com o tamanho do mundo naquele tempo 
caminharei descalço até que os meus pés 
se consumam e voltem
ao tamanho inicial. 


 


 

Foto do autor do texto



   A princesa está diferente
disse o homem de bigode e condecoração ao peito
   subiu em mim o grau de apuro com que olhei a princesa
disse o homem
não sabendo o dito falador do sulco que abriu
no meu pensamento
a mácula que me ficou do tempo em que fui ignorado
pela bela princesa admirada pelo duque falador
inquieto com a beleza daquela
que já foi a graça dos meus dias

saí sem qualquer vénia dizendo
   passe bem
exibindo a minha bengala que levantei ameaçador 
pensei
hei-de convidá-lo para um copo de absinto envenenado
quanto à princesa reservo-lhe um poema
como uma oração à beleza sob todas as formas
depois abandono-a na minha memória 
e vou registando o momento à maneira de Proust
o tempo de vida é curto e longo. 


 


IA



Deram-me a mão 
uma das duas da minha vida
que não eram as minhas
eu disse
     agora tenho que ir
e como foi diferente das outras
despedidas angustiantes mas 
com esperança de retorno
esta
a de agora 
foi como um pedido de desculpas 
por não poder ser evitada
e dela não haver regresso

como foi tranquila e bela
no ascenso do fumo do incenso
eu disse 
abram a janela
estou de partida
levo a tua mão na minha. 



 



As mãos que acariciaram

no prelúdio do amor

são as mesmas que embalam

a semente feita homem.





 

Foto do autor do texto



É tarde 
é sempre tarde 
quando te encontro
deixo tudo e corro
atrás de uma sombra
no jogo que me propões 
percebo
na agitação da folhagem
que já passaste por ali
e não te encontro

foi a última vez que brinquei 
às escondidas contigo. 







De que lado dormias na nossa cama? 

??? 

eu lembro-me

era do lado certo. 






Nos meus passeios pelo campo
encontrei um corvo que me seguiu
trago-o para te o oferecer
negros cantos lhe ensinei
em troca me revelou trazer nele
o espírito de Bukowski
achei melhor não o ensinar a falar 
este corvo que te ofereço 
apenas cantará negras canções 
as palavras serei eu que te as direi. 


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VIVA O 25 DE ABRIL!





Não fiques sentado o dia todo

segue uma rã 

e encontrarás o rio




 




Acordarei se for necessário 
deste sono profundo 
em que estou acordado
tudo o que me dizem
me parece raro
mas continuo a crer que
há uma certa inutilidade
nesta escritura de versos
acordarei se for necessário 
deste sono profundo 
em que estou acordado
e encerrarei de vez esta voz
que me dita as palavras
 
depois adormeço a sério 
e sonho que vivo em paz
como um cacto das Galápagos.