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Chez-Ferdinand


Paris…
… dizer Paris
era começar a falar daquela época.
Nesse tempo
estávamos a construir as nossas recordações.
Naquele primeiro andar da Rue du Colonel Driant
vivíamos o sonho alimentado durante anos,
Paris era o nosso lugar.
Acordar e sair para a rua
era um beijo prolongado que recebíamos e dávamos àquela cidade.
Era perto da Comédie Française
onde montava o meu cavalete todos os dias de manhã.
Só de manhã,
pois trabalhava mais por prazer do que por necessidade.
Tu, como funcionária da secção internacional
da Bibliotheque National de France ganhavas o suficiente
para me permitir ser artista a tempo inteiro.
Ao fim da tarde,
depois do teu regresso a casa
lanchavamos no café que existia no nosso prédio,
mesmo ao sair da porta, Chez-Ferdinand.
Portas fechadas que faziam soar o pequeno sino quando eram empurradas,
balcão com bancos de napa vermelho escuro,
mesas em madeira escura, cadeiras de costas baixas e circulares,
as cadeiras de que tu gostavas.
Era o chá de fim de tarde com a baguette-au-beurre,
e os olhos agarrados ao vidro
registando a vida lá fora
tal como imaginamos quando Paris era, ainda, um projecto.
Aquele café tornou-se o lugar mais importante da nossa vida.
Ali almoçavamos e jantavamos várias vezes,
Ferdinand com o seu avental preto
lançava-nos o seu bonjour!!!
e esse era o som de Paris
o sonoro daquele filme onde nos instalamos
e isso queria dizer
a viver Paris e a assistir a Paris vivendo.
Por vezes, muito tarde já,
bastava assomar à pequena varanda da janela da sala
e ver se havia luz
para, correndo escada abaixo fazer de Chez-Ferdinand
a última paragem antes de deitar
para um café quentinho e dois dedos de conversa.
Nesses restos de noite a música de fundo que não tinha intervalo
fazia-nos entrar nessa rotina de ouvir sem escutar.
Mas aquela música de Sezene Aksu que nunca ouvimos noutro local
fazia parar tudo dentro de nós
e esse era o sinal para os nossos olhos se cruzarem prolongadamente
num código erótico e feliz
que nos dizia que se fosse sempre assim
a vida era um lugar sem fim à vista.
Chez-Ferdinand e a nossa casa eram o nosso espaço repartido,
de tal modo que alguns dos livros que lia
ao compasso dos golos de café-au-lait bem quente numa grande chávena,
se arrumavam na mesa ao canto da montra
junto à máquina registadora, aos talheres, aos guardanapos
parecendo aceitar esse meu desprezo por eles, como uma forma
de absorver todos os aromas próprios e característicos de um café de Paris.
O único que sobreviveu é , para mim, um arquivo desses cheiros intensos,
folheio-o não para o ler mas para recordar.
Todos

se perderam naquela noite.

Acordamos assustados pelo som brutal de uma explosão
corremos ambos para a janela da sala
havia luz, muita luz, fogo, vidros e destroços pelo chão,
Chez-Ferdinand ardia iluminando toda a rua.
Desci a escada num pânico incontido
o nosso espaço ardia e com ele os meus poucos livros
que estavam sobre aquela mesa ao canto da montra.
O fogo com início nos fundos do café
devorou tudo em todas as direcções
com uma urgência de destruição que ninguém conseguiu conter.
Desisti dos meus poucos livros decerto já destruídos
e regressei correndo para junto de ti.
Impediram a minha entrada no prédio,
empurrei com desespero,
gritei com aflição que estavas dentro de casa.


Assisti mais tarde à tua saída, despedi-me de ti com um beijo nos teus cabelos.
O café e com ele Ferdinand,
a nossa casa e tudo o que tínhamos se consumiu tragicamente.
Dessa época nada resta
a não ser aquela meia dúzia de aguarelas de Paris que a galeria nunca vendeu.
Nem uma fotografia tua tenho para te olhar e dizer Paris.







22 comentários:

  1. Paris.
    Um excelente ponto de partida para uma criação literária de força
    Gostei

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  2. Mesmo que a história seja ficção : isso não a torna menos real.
    Única, comovente, grandiosa.
    Realmente, um magnífico ponto de partida para um romance ou um filme.

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  3. A música turca, embora não seja a minha praia, tem um som angustiante semelhante ao fado português.

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    1. O autor fica contente por lhe ter agradado. Não dispenso os seus comentários.

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  4. «Dessa época nada resta
    a não ser aquela meia dúzia de aguarelas de Paris que a galeria nunca vendeu.»
    Mesmo quando queremos mentir a nós próprios
    a nossa memória
    não nos deixa... e trás tanto
    quanto aqui detalhas
    aposto que ainda guardas o odor das cinzas...

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    1. As aguarelas já não estavam na nossa vida, estavam na galeria, há muito tempo, fora dos acontecimentos. Ainda guardo um resto das cinzas.
      Um abraço.

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  5. Huuum!
    Hoje aqui as palavras são muitas... terei de cá voltar.
    Por agora, VIVA 2021 carregado de nuvens brancas.
    Obrigada Luis.
    Beijo.

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    1. Obrigado. Espero que volte e leia, não dispenso as suas palavras.
      Viva, viva.

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  6. Bom dia Luís. Hoje não deixarei comentários, desejar um Feliz Ano Novo com muita saúde e paz.

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  7. Bom dia. Vim de manhã, li e reli. Uma leitura muito intensa, emocionante que me deixou com um nó na garganta e lágrimas nos olhos. Como história real, muito dolorosa. Como exercício de escrita, muito boa, porque nos consegue transmitir sentimentos e emoções muito fortes. Tive que vir agora porque na altura, não consegui comentar.
    Abraço e um bom 2021. Especialmente que a saúde nunca lhe falte.

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    1. As suas palavras são um incentivo. É importante saber o que os leitores pensam, tanto mais que a Elvira tem uma longa prática de escrita.
      Agradeço muito a atenção que me dedicou.
      Desejos também de um ano feliz e com saúde.
      Um abraço

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  8. Meu caro Amigo
    Um relato que é uma memória dolorosa e direi salgada. Intenso e que me emocionou até âs lágrimas, que caem silenciosas e desamparadas. Pode ser ficção, penso que não, mas obrogada por deixar aqui estes relatos de vida que eu gosto demais de ler.
    Um bom ano!
    beijinhos
    :)

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    1. Mais um comentário de alguém que também se dedica à escrita e cuja avaliação é importante para mim. Só posso agradecer-lhe.
      Bom Ano também para si com saúde e momentos felizes.
      Um abraço.

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  9. Li sofregamente e visualizei cada cena como se de um filme se tratasse.
    A sua escrita tem o poder de nos prender, surpreender e neste particular, comover. Parabéns!

    Um beijinho

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    1. Agradeço muito o que disse sobre o texto, fico contente por ter provocado a sua sensibilidade, esse é o objectivo.
      Boa Noite.

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  10. Paris, a dita cidade da luz. A cidade que encantou e encanta muitos milhões de pessoas. Encantou-me a mim, não admira sou da geração em que o francês era uma língua querida e ouvida em muitos países europeus. Eu sou latino e identifico-me com francês, italiano, português, espanhol nem tanto, mas tirando o aspecto linguístico, Paris, era uma cidade onde viveria !
    Belíssimo texto e bonita composição !!!... a foto, se fosse original seria interessante !

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    1. Também sou dessa época e Paris é inesquecível. A foto pretende dar a conhecer que a rua citada no texto existe na realidade.
      Obrigado pela apreciação. Boa Noite.

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  11. E voltei, como prometi.
    Li e reli o emocionante relato, na tentativa de descobrir se a narrativa é real ou ficcionada.
    Fiquei-me pelo real e não perdoo o autor se me tiver enganado e comovido e apiedado.
    Paris de boas e más memórias.
    Brindemos à vida, com um café-au-lait bem quente.
    Beijo, boa semana.
    (respondi no pétalas)


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    1. Quero agradecer-lhe ter voltado. Não estou preparado para revelar se o texto é real ou ficção, aliás, qualquer que fosse a resposta, quebraria a emoção.
      Gostei muito das suas palavras. Conto com os seus comentários.
      Um abraço.

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    2. Resposta inteligente. Outra coisa eu não esperava.
      (Obrigada pela resposta no pétalas.)
      Beijo, boa noite de muito frio.

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