Foto de Bartolomeu Rodrigues





Ao acordar


Logo que acordo 

mais minuto menos minuto 

lá está o som irritante do relógio antigo 

assim como quem trinca o tempo 


na parede em frente 

aquele quadro que foge à minha autoria 

está sempre a mudar de cor

cores ferozes ___ por vezes


as manchas do tecto pintadas 

pelo tabaco do anterior inquilino 

massacram-me com a promessa 

que fiz a mim próprio de o pintar 


sentado na cama deito um olhar 

para a almofada ao meu lado 

um hábito que me ficou do tempo 

em que ouvia alguém a respirar. 


Estou ainda descalço 

ponho os pés no chão frio 

e dou conta da minha existência 

numa perda tal de justificação 

que até o meu nome me soa desconhecido 

ou talvez nem tanto ___ apenas estranho 


e tudo isto me enche o fundo dos olhos

com a possibilidade das lágrimas 

que num esforço para me tornar lúcido 

consigo conter ___ ou melhor 

o que eu tento conter é o medo inexplicável 

o mesmo medo de criança 

das vozes altas ___ das reprimendas 


agora tudo em silêncio portanto 

medo do silêncio que foi 

o que ficou na almofada ao meu lado. 


O tempo tudo transforma no seu mastigar 

dos dias dos meses e dos anos 

numa espécie de banquete invisível 

onde somos nós os consumidos 

sem nos darmos conta e sempre 

na grande dúvida do que virá a seguir. 


Um estranho instalou-se no meu cérebro 

e lá continua a viver.




 

12 comentários:

  1. Hay huellas del pasado, que vienen a la mente y no se pueden reprimir.
    Besos.

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  2. Tão belo...tão belo o triste Poema.
    Ainda que a medo, quase me reconheço nessa realidade.
    Felizmente, a bem da minha sanidade mental, falta-me o "quase"....

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    1. "Quase" ter-se reconhecido no texto de hoje, quer dizer, objectivo alcançado pelo autor, tocar a sensibilidade do leitor. Obrigado.

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  3. Embora não me tenha reconhecido no poema de hoje, é um dos seus melhores poemas.
    Ao acordar admiro a aguarela do poeta, na parede ao lado esquerdo da cama.
    Abro a janela, mesmo no inverno, e digo simplesmente „bom dia, alegria“ 🍀

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    1. É agradável para o autor, saber que há partículas da sua criação a conviver com os seus leitores. É uma forma de se saber acompanhado.

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  4. Um Poema brilhante! Mesmo sendo nostálgico.
    O último verso despertou-me imensas sensações, por isso, li e reli e voltei a ler...

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  5. Havemos de falar deste teu poema
    olhos nos olhos
    Talvez amanhã... porque não?
    Dá-me angústia a tua depressão

    Quando acordar, ligo-te

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  6. Achei muita saudade, para não dizer sofrimento neste poema.
    A vida e a solidão é dura. Muito dura.
    A mensagem passou, mas fiquei com o coração apertado.

    :(

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    1. É um elogio quando um leitor me diz que se emocionou. Muito obrigado.
      Um abraço.

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