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Uma ausência 


Um homem está sentado a uma mesa 

sobre a mesa há dois copos e uma garrafa 

de uma bebida indeterminada 

O homem já é quase velho 

e fala para um lugar 

onde está uma cadeira vazia 

O homem fala para uma ausência 

e essa ausência é a do seu pai 

curiosamente correu pelo nariz do homem 

o cheiro do tabaco que o pai fumava 

tabaco espanhol o mesmo que a sua avó 

___ a mãe do pai ___ fumava 

Passaram muitos anos desde a sua morte 

o homem é já mais velho do que o seu pai 


O homem passou a noite inteira 

contemplando a ausência do pai 

sendo então o homem já mais velho 

que o seu pai foi capaz de lhe dizer tudo 

o que nunca foi capaz de lhe dizer 

e terminou num sussurro audível 

     mato-te e engulo-te meu pai 

e o pai riu-se 

coisa que nunca o viu fazer 


Nisto o dia levantou-se 

e uma súbita lâmina de luz entrando 

por entre as portas interiores da janela 

iluminaram o lugar do ausente

com um brilho diferente da luz simples do sol 

O homem não resistiu e saudou

a ausência do seu pai 

com um gole da bebida indeterminada 

e com as suas últimas lágrimas.




 

16 comentários:

  1. Uma ausência bem sofrida regada com excesso de alcool, a conjugação perfeita para me causar arrepios e náusea.
    Beijos e um bom dia

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    1. Objectivo conseguido, tocar a sensibilidade do leitor.
      Bom Dia de Ano Novo.
      Um abraço.

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  2. Bom dia
    Como se pode ficar indiferente perante esta ausência .

    JR

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    1. Saúdo a sua vinda e o seu comentário. Agrada-me não deixar o meu leitor indiferente.
      Bom Novo Ano.
      Um abraço.

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  3. Dessas ausências que em épocas sentimentais elas retornam aos mais sensíveis.
    Gosto do sentir do poeta.
    Muito bom Ano Novo L ,para todos nós !
    meu primeiro abraço de 2023 para que não nos falte o ano inteiro .

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    1. Há momentos cíclicos em que a memória se aviva e os ausentes esperam o nosso olhar.
      Bom Ano, saúde.
      Um abraço.

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  4. Beber em companhia tem mais piada.
    Recordar os que partiram tão cedo é tradição na nossa família.

    A intimidade com os leitores vai evoluindo, doce (às vezes brutal) e segura, através das dúvidas partilhadas ou das confidências que se pressentem ser situações verdadeiras. A leitora das margens do Reno entende assim as publicações do POETA.

    Aproveite 2023 sempre com os olhos no presente 🍀 e continue a surpreender os seus leitores com a riqueza do seu passado!!

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    1. Celebro a fidelidade e o acompanhamento dos meus leitores expondo a minha produção sem reservas.
      Estarei aqui até ter quem me siga, afinal, os leitores são a minha razão de continuar.

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  5. Estive em excelente companhia, nesta passagem de ano, e brindei com água tanto aos presentes quanto aos ausentes...

    Este poema tocou-me profundamente, embora me não consiga identificar com esse homem que brinda à memória de seu pai com vinho e com as suas últimas lágrimas.

    Um enorme abraço, L.!

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    1. Os ausentes sempre nos fazem um sinal para que nos lembremos deles, em certas ocasiões.
      Um abraço.

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  6. Um poema comovente. Um pai que se recorda, não sei bem se com carinho, se com mágoa, mas de qualquer modo com saudade.
    Abraço, saúde e um feliz Ano 2023

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    1. Até as mágoas se vão aveludando com o tempo, embora não se esqueçam.
      Saúde e que 2023 seja um bom ano.
      Um abraço.

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  7. Um poema de saudade.
    Uma memória que bateu no Poeta.
    (Falo por mim .Um pai que tanta falta me fez, ao longo da vida!)
    Ficou a saudade...
    :(

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