Uma criança, um jovem, um velho


São tantas as horas de lazer 

que não deixam medrar 

qualquer função que não contenha 

um condimento de prazer 


dou por mim de cotovelos assentes 

no parapeito da varanda 

entre um cigarro 

e um cuspo de desalento 

abraço com os olhos as orquídeas 

que ___ reparo ___

também estão a olhar para mim 


vejo-me então a passar ___ lentamente 

em frente à minha casa 

e em cada passo à cadência 

de LES INDES GALANTES

reconheço-me na minha silhueta 

as costelas flutuantes mais saídas 

o pescoço longo 

o queixo horizontal 

trago pela mão uma criança 

reconheço-me no meu cabelo loiro 

nos calções com suspensórios 

nas sandálias 

na mão trago uma caixa preta de aguarelas

caminho ao lado de mim próprio 

saltando de quando em quando ___

___ assim se vão tornando transparentes 

as figuras

caminhando até ao fim da rua 


e eu de cotovelos assentes 

no parapeito da varanda 

vejo-me de novo vindo do fim da rua 

reconheço-me no jovem adulto 

na minha barba vaidosa 

no meu longo cabelo

agora castanho

trago pela mão um velho 

no qual me reconheço 

nas costas dobradas 

na falta de cabelo 

no caminhar arrastado 

e cada passo à cadência 

de LES INDES GALANTES 

passam sob a minha varanda 

o jovem não me reconhece 

mas o velho acena-me 


Há uma criança 

      um jovem e 

      um velho 

que habitam o poema triste 

que nasce aos poucos 

do próprio poema ___

___ não quero saber 

       estou tão feliz.





 




 

24 comentários:

  1. Rogério V. Pereira2 de maio de 2023 às 00:25

    Não tenho varanda
    tenho janela
    e vejo-me através dela
    eu, passando
    de mão dada

    Tenho assim uma gravata
    Não sou loiro, nunca usei boina
    Quer acredites, quer não
    era eu que te levava pela mão

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  2. Um poema bastante inquietante e com imensa saudade de um tempo que já era. A foto é soberba e o vídeo também. Parabéns poeta!
    Beijos e um bom dia

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  3. Bom dia
    A foto, o texto e o vídeo complementam-se com uma sensibilidade extraordinária de quem sabe o que faz.

    JR

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    1. Caro Joaquim, agradeço o seu comentário, sempre positivo e animador para o autor.
      Um abraço.

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  4. Bom dia. A sua sensibilidade e capacidade poética impressiona e emociona. Uma foto linda talvez a lembrar tempos antigos e poema inserta em recordações de juventude e idade mais adulta. Harmonia encantadora

    Que a felicidade esteja sempre em seu coração
    *

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    1. Cara Mariete, é sempre bom ter comentários como o seu, estimula o autor a continuar.
      Muito Obrigado.
      Um abraço.

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  5. De volta às margens do rio Reno, entro novamente aqui, após um pequeno-almoço solitário, sem um mínimo poético, mas delicioso.

    A fotografia é já conhecida, mas muitíssimo bem escolhida.
    A criança, o jovem, o velho habitam a alma do poeta.

    Estou com um pé fora de casa, portanto, vejo e ouço o vídeo quando regressar.

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    1. De pequenos almoços sem poesia... está o mundo cheio.
      O autor, nas suas múltiplas evoluções, habita a sua própria pessoa.

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  6. um detalhe de memória
    que saltou no tempo
    caminhando em modo antigo
    e terminando na alegria de um acenar
    que reaviva outros tempos com saudade.
    sensivel e belo.
    boa semana.
    :)

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  7. Que esplêndido poema, L.!

    Qual de nós se não encontra amiúde com a criança e o jovem que foi, se tudo o que fomos até este preciso instante
    nos continua a habitar?

    Forte abraço!

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    1. Somos o mesmo embora outros que se vão tornando diferentes.
      Um abraço.

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  8. O filme da vida, que passa pelas estações da existência numa fracção de segundos.
    Os garotos de meu tempo (também aqui me revendo) não usavam calças, somente calção, por mais calor ou frio que fizesse, habitualmente com suspensórios.
    Somos um pouco do tudo que vivemos, a criança, o jovem, o idoso e a mistura de todos eles.
    Um kandando

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  9. Uma criança, um jovem, um velho, abraçando a vida neste belíssimo poema.
    Beijinhos e boa semana.
    Ailime

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  10. Cidália Ferreira deixou um novo comentário na mensagem "":

    Simplesmente maravilhoso! Obrigada pela aprtilha:))
    .
    Num sem fim de tormentos...
    .
    Beijos e uma boa tarde!

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  11. VENTANA DE FOTO deixou um novo comentário na mensagem "":

    Todos pasaremos por esas tres fases, si es que no se nos va la vida de las manos antes de tiempo.
    Besos.

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    1. Ya sea la vida corta o la vida larga, siempre seremos diferentes en cada época. Un abrazo.

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  12. Gosto imenso da foto, embora me pareça que já a tinha visto. O poema, um monólogo do poeta, com o passado e o presente, nos sentimentos que lhe provocam o menino e o jovem que foi, e que transporta na sua memória, e o homem que no presente, não aceita a idade que sente como a prisão dos sonhos que o habitam, e se isola.
    Abraço, saúde e um feliz mês de Maio.

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    1. Uma análise que cabe perfeitamente no texto de hoje.
      A foto já tinha sido publicada antes.
      Um Maio florido também para si.
      Um abraço.

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