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Talvez volte a respirar um dia
estou a aprender
como se inspira e como se expira
viver tem a sua técnica
não basta estar vivo.
Já é Setembroneste país longínquoque é o meu quintaltrago no peito um girassolcravado por amorpor uma mão que está longelá no alto soldados disparamde tempos a tempossobre bandeiras verdes e pretascontra o perigo recolho-mesempre voltado para o solrecebo a visita de um anjo mulhercom uma grinalda de luzque me perguntaqueres vir comigo?eu respondosim ___ dá-me tempopara me preparar.
Na verdadefoi assim que nos fomos afastandoignorando as leis que regemos encontros sentimentaiscom a ideia de que todos estamosa escrever um romance originalsegundo as nossas regrasdepois dá nistofingimos que não percebemospara podermos continuara trabalhar neste ofício de vivere isso é possível desde queo nosso ventre se mantenha firme.
Dá tempo ao tempoe verás um cão a falarele te dirácaminha que te passo por entre as pernasdá tempo ao tempoe verás um cãoa falar com outro cãoa quem dirádá tempo ao tempoe verás um homem a ladrar para outro homemdá tempo ao tempoe terás um cão estrangeiroque te trará pela trelajá que do ocidentenascem todas as inovaçõesdo ocidente virão até as ordense o cão te dirácaminha que me passarás por entre as pernase tu caminharás tanto e tão alto numa longa trelaque te serão atribuídastrês estrelas douradasque deixarás de herançaao cão ocidental que fala.
Tu eras quem sabia quase tudo sobre a tristezasabias medir a frequência das lágrimassabias como se alterna a melancoliacom a vontade de comersabias quando a poesia se negavaa ser a carne dos nossos ossossabias quando a nudez era menos importantedo que a maneira de falartu sabias quase tudo sobre a tristezae como fazer perdurar em nósa vontade de vida apesar de tudopor todo esse saber te chameino meio da afliçãomas tu já não eras daquele tempoo fogo queimou tudo o que eu ainda tinha.
Na contemplação da parte longínqua do meu corpoos dedos inúteis ___ imóveisde tão treinados na fuga se gastaramsuportam no entanto o edifício antigofundações a céu abertoa parte longínqua do meu corpoo último pedaço de pessoa a dar à luzquando a parte mais importante já era saudadao lugar onde afinal o outono chega por decretodo cérebro o lugar mais poderosoexcepto nos maratonistas e outros atletastambém a esses os dedos inúteis ___ imóveistiveram o seu tempo e glóriacontemplo a parte longínqua do meu corpoe reconheço nela o respirodo meu pai e dos meus filhos.
Nunca adivinhamos as verdadesque deveriam ter sido ditasos corpos dominam tudo como as nuvensespessas que cobrem a luz insubstituívele apagam as sombras que tornam reaisos corpos com o seu desejo na sombraas palavras ___ as essenciaisforam substituídas por algo mais próximode cânticos que só os amantes ouvemesse foi o repetido erro que comprometeuo que deveria ser sensato e duradouromuito invocado tardiamenteesse domínio do corpo foi a lei do consumoali ficaram como dois peixes macho e fêmeasem futuro sem separação possívelprisioneiros entre dois vidros.
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Eduardo Batarda
1943 - 2025
Ninguém nos ensina a morrerpor isso somos sempre surpreendidosnão reconhecemos a despedidana cara dos outrosnão estamos com atençãoà delicadeza com que nos falamnão achamos estranhoa condescendência dos próximosesgota-se a nossa bravurasem que demos por issoe nos elogiem por issoa vertigemo nevoeiro inexplicávelas mãos suadaso peito a incharcom a desconhecida sensaçãoninguém nos ensina a morrercom um ar natural para evitar o pavorcom o corpo direitosem amarrotar a camisa lavadacomprada ontem para usar vivoagora que já nada é importantea não ser perceber o que se passano interiordas veiasdo coraçãodos pulmõese principalmente do cérebromas tarde de maissó quem já morreu uma vezsabe como soa aquele zumbidoas caras estranhas à volta que não ouvemdepois ______ tudo branco e escuro.
Esta é uma ruga encomendadadisse o homem para a sua mulherapontando com um dedoa pele cavada na testafiquei perplexo quando dei por mim na vidae desde aí enruguei meia carae nunca mais fechei os olhosdisse ainda o homemamordorclamorquando eu não abrir mais os olhosvou viver para Chernobyl.
O sorriso das avós é novidadequando vão pelo campo secoe despovoado que lhes deixaramno caminho não há pó nem pedraque não seja um jardimjá não há memória da pele seca do abdómentudo passou a ser possível num corpocansado que não se cansa ___ é o mistérioda inexplicável função do corpo das avósum dia alguém as tomará ao colocom mãos maiores do que elasque não terão nem corpo nem caraalguém engolirá em lágrimaso sorriso das avós.
Meu Caro Camaradabem cedo me deixaste sem notíciasde novo te vi mas não falavasjá me tinhas contado no entantoque no quente do verão de setenta e cincomuitos pés tiveste no teu encalçoe ainda ouviste o gritoqueremos o pintormas nós mais fortes sempre fortesmantivemos nos dentes a bandeirae cantámos o povo e a razãomeu Caro Camaradase me ouves não quero assaltar a tua pazmas partilho contigo o meu desgostoos que gritaram por tisão agora os que nos governamresistimos com a bandeira entre os dentes.
Os nossos dedos falaram sobre a peleescreveram sem ruído e desejaram sem violênciaentrar pelos nossos corpos dentroo suor sangue escorrendo nos murmúrioso espaço era todo nosso e nele ondulámoscom a perfeição que ordena a desordemo medo que o entusiasmo tecena impossibilidade do eternodissehá muito tempo que não conheço ninguémpelecabelovozfica no meu mundo sem saíres do teu.