Foto do autor do texto



Talvez volte a respirar um dia
estou a aprender
como se inspira e como se expira
viver tem a sua técnica 
não basta estar vivo. 






Quando me dizes

volta em breve

sento-me descalço os sapatos

e digo-te

mostra-me o teu corpo

de ti é a única memória boa

que me falta. 



Imagem de Artguru
 


Já é Setembro 
neste país longínquo 
que é o meu quintal
trago no peito um girassol
cravado por amor
por uma mão que está longe

lá no alto soldados disparam
de tempos a tempos
sobre bandeiras verdes e pretas
contra o perigo recolho-me
sempre voltado para o sol

recebo a visita de um anjo mulher
com uma grinalda de luz
que me pergunta
     queres vir comigo? 
eu respondo
     sim ___ dá-me tempo
     para me preparar. 


 


Foto do autor do texto tomada do documentário VIDA SELVAGEM


Não te confundo com ninguém 
reconheço-te no meio da multidão 
lamentável 
que já não sejas meu amigo
mas compreendo que não quisesses
estar acordado 
sempre num dia claro. 



Imagem tomada do documentário VIDA SELVAGEM 



Na verdade
foi assim que nos fomos afastando
ignorando as leis que regem 
os encontros sentimentais
com a ideia de que todos estamos
a escrever um romance original
segundo as nossas regras

depois dá nisto
fingimos que não percebemos
para podermos continuar 
a trabalhar neste ofício de viver
e isso é possível desde que 
o nosso ventre se mantenha firme. 


 


 

Imagem de ChatGPT 



Dá tempo ao tempo
e verás um cão a falar
ele te dirá 
     caminha que te passo por entre as pernas
dá tempo ao tempo 
e verás um cão 
a falar com outro cão 
a quem dirá 
     dá tempo ao tempo 
     e verás um homem a ladrar para outro homem
dá tempo ao tempo
e terás um cão estrangeiro
que te trará pela trela
já que do ocidente
nascem todas as inovações 
do ocidente virão até as ordens
e o cão te dirá 
     caminha que me passarás por entre as pernas
e tu caminharás tanto e tão alto numa longa trela
que te serão atribuídas
três estrelas douradas
que deixarás de herança 
ao cão ocidental que fala. 

 



Tu eras quem sabia quase tudo sobre a tristeza 
sabias medir a frequência das lágrimas 
sabias como se alterna a melancolia 
com a vontade de comer
sabias quando a poesia se negava
a ser a carne dos nossos ossos
sabias quando a nudez era menos importante 
do que a maneira de falar

tu sabias quase tudo sobre a tristeza
e como fazer perdurar em nós 
a vontade de vida apesar de tudo
por todo esse saber te chamei
no meio da aflição 
mas tu já não eras daquele tempo
o fogo queimou tudo o que eu ainda tinha.


 


Imagem de ChatGPT



Na contemplação da parte longínqua do meu corpo 
os dedos inúteis ___ imóveis 
de tão treinados na fuga se gastaram 
suportam no entanto o edifício antigo
fundações a céu aberto
a parte longínqua do meu corpo 
o último pedaço de pessoa a dar à luz
quando a parte mais importante já era saudada
o lugar onde afinal o outono chega por decreto
do cérebro o lugar mais poderoso
excepto nos maratonistas e outros atletas
também a esses os dedos inúteis ___ imóveis 
tiveram o seu tempo e glória 

contemplo a parte longínqua do meu corpo 
e reconheço nela o respiro
do meu pai e dos meus filhos. 


 


Imagem de ChatGPT



Mergulho no Nilo azul
o meu corpo envelhecido
as águas milagrosas
lavam as minhas manchas
e tornam de novo
o meu corpo novo
então a minha alma velha
parte numa barca
para o Nilo branco.

 


Imagem de ChatGPT



Nunca adivinhamos as verdades
que deveriam ter sido ditas
os corpos dominam tudo como as nuvens 
espessas que cobrem a luz insubstituível 
e apagam as sombras que tornam reais
os corpos com o seu desejo na sombra
as palavras ___ as essenciais 
foram substituídas por algo mais próximo 
de cânticos que só os amantes ouvem
esse foi o repetido erro que comprometeu 
o que deveria ser sensato e duradouro
muito invocado tardiamente

esse domínio do corpo foi a lei do consumo
ali ficaram como dois peixes macho e fêmea 
sem futuro sem separação possível
prisioneiros entre dois vidros.


_______________________________________________________


Eduardo Batarda

1943 - 2025

Foto de Observador



Foto do autor do texto



Ninguém nos ensina a morrer
por isso somos sempre surpreendidos
não reconhecemos a despedida
na cara dos outros
não estamos com atenção 
à delicadeza com que nos falam
não achamos estranho
a condescendência dos próximos 
esgota-se a nossa bravura
sem que demos por isso 
e nos elogiem por isso

a vertigem
o nevoeiro inexplicável 
as mãos suadas
o peito a inchar 
com a desconhecida sensação 
ninguém nos ensina a morrer
com um ar natural para evitar o pavor
com o corpo direito 
sem amarrotar a camisa lavada 
comprada ontem para usar vivo

agora que já nada é importante
a não ser perceber o que se passa
no interior
              das veias
                           do coração 
                                          dos pulmões 
e principalmente do cérebro 
mas tarde de mais
só quem já morreu uma vez
sabe como soa aquele zumbido
as caras estranhas à volta que não ouvem
depois ___
___ tudo branco e escuro.


 


Imagem de CNN Brasil





Esta é uma ruga encomendada

disse o homem para a sua mulher
apontando com um dedo
a pele cavada na testa 

fiquei perplexo quando dei por mim na vida
e desde aí enruguei meia cara
e nunca mais fechei os olhos

disse ainda o homem

amor
dor
clamor
quando eu não abrir mais os olhos
vou viver para Chernobyl.



Foto do autor do texto 



O sorriso das avós é novidade
quando vão pelo campo seco 
e despovoado que lhes deixaram
no caminho não há pó nem pedra 
que não seja um jardim
já não há memória da pele seca do abdómen
tudo passou a ser possível num corpo 
cansado que não se cansa ___ é o mistério 
da inexplicável função do corpo das avós 
um dia alguém as tomará ao colo
com mãos maiores do que elas
que não terão nem corpo nem cara
alguém engolirá em lágrimas 
o sorriso das avós.



 




Meu Caro Camarada
bem cedo me deixaste sem notícias 
de novo te vi mas não falavas 
já me tinhas contado no entanto
que no quente do verão de setenta e cinco
muitos pés tiveste no teu encalço 
e ainda ouviste o grito
     queremos o pintor
mas nós mais fortes sempre fortes 
mantivemos nos dentes a bandeira 
e cantámos o povo e a razão 
meu Caro Camarada
se me ouves não quero assaltar a tua paz
mas partilho contigo o meu desgosto
os que gritaram por ti 
são agora os que nos governam 
resistimos com a bandeira entre os dentes.


 





Os nossos dedos falaram sobre a pele
escreveram sem ruído e desejaram sem violência 
entrar pelos nossos corpos dentro
o suor sangue escorrendo nos murmúrios 
o espaço era todo nosso e nele ondulámos
com a perfeição que ordena a desordem
o medo que o entusiasmo tece
na impossibilidade do eterno 
 
disse
há muito tempo que não conheço ninguém 
pele
cabelo
voz 
fica no meu mundo sem saíres do teu. 

 



Foto do autor do texto sobre escultura de autor desconhecido


A fenda
a libertação 
do escuro do mar. 




Imagem de ChatGPT



Não somos mais do que
um instrumento da natureza
um gesto
no meio de todos os gestos do mundo
o esforço para parecer que
não se está em pranto interior
fingir que se acredita
no sentimento a que se chama amor
e que não é mais do que
um chapéu esquecido sobre uma cadeira.