Aquela palavra era um grito
Acordei assustado nos meus sete anos,
uma rajada de metralhadora fez-me saltar da cama.
Descalço, corri para a abertura que tinha sido a porta da minha casa
quase destruída pelos bombardeamentos.
Corri por cima dos destroços que já eram novos caminhos
abertos pelos pés dos moradores.
Ao chegar à pequena encosta de onde se avistava a estrada
vi o corpo do meu pai. Achei que estava morto.
Senti as minhas pernas tremerem
e o dia pareceu incrivelmente mais claro de repente.
Deitado de borco deixava correr um fio de sangue que nascia debaixo dele
e ligava a uma poça enorme mais adiante.
Ainda vi ao longe o jeep com os soldados que o alvejaram,
gritavam e brandiam as armas ao alto.
Não tive coragem de descer e ir ter com ele.
A minha mãe e alguns vizinhos acorreram.
Viraram-no de costas,
na sua camisola branca o meu pai tinha pintado a vermelho
a palavra FOME.
Aquela pequena palavra era um grito
liberdade, dignidade, exclusão e… fome.
O meu pai tinha violado o recolher obrigatório.
Ontem à noite ouvi-o dizer:
-Amanhã alguma coisa vai mudar, não aguento mais!
Não aguentava mais a pobreza
que só a ajuda internacional minorava
nem a violência dos bombardeamentos e das humilhações.
Passaram dez anos.
A recordação viva dessa manhã
era uma rajada de metralhadora
que todos os dias me assustava ao acordar.
Essa manhã e a fome que herdei
alimentaram um sonho que hoje vou realizar
no meio desta multidão.
Vesti a camisola que o meu pai pintou com a palavra FOME
e dentro de segundos, com as lágrimas nos olhos e tolhido de medo,
puxarei a cavilha desta granada que trago à cintura
e o dia parecerá incrivelmente mais claro de repente.
ResponderEliminar😥
O mais curto comentário que recebi até hoje. E agradeço.
EliminarUm abraço
A violência como um bálsamo de morte, e de vida
ResponderEliminarGostei
A violência histórica.
EliminarUm texto muito belo, na beleza crua e intensa,
ResponderEliminarde quem sabe ou antevê, o negrume dos negros dias que se avizinham.
Sei que ignorar a realidade é alienarmo-nos dos dias que vemos passar a correr para o especto da fome e da miséria,
mas tente pensar naquilo que a vida ainda nos traz de bom: O sorriso dos nossos netos...
Um abraço e uma Boa Noite, sem pesadelos.
Um comentário profundo, com esperança, que agradeço. O sorriso dos netos, agora, só por trás de um vidro.
EliminarBoa Noite, um abraço também.
Durante a leitura ocorreu-me „O Massacre em Guernica“ e a poesia de Federico Garcia Lorca.
ResponderEliminarPoema extremamente político que me deixou sem respiração e sem palavras.
Não conheço o poema, vou pesquisar. Conheço Guernica.
EliminarDurante a leitura ocorreu-me „O Massacre em Guernica“ e a poesia de Federico Garcia Lorca.
ResponderEliminarPoema extremamente político que me deixou sem respiração e sem palavras.
No YouTube aparece "a las cinco de la tarde" como o poema Guernica mas esse poema diz respeito à morte de Manolete.
EliminarLorca morreu antes do bombardeamento de Guernica.
EliminarÀ minha mente apareceu em primeiro lugar o painel Guernica de Pablo Picasso como representativa do bombardeio sofrido pela cidade de Guernica — e de toda a barbaridade da Guerra Cívil de Espanha. A poesia de Garcia Lorca é um GRITO como o poema desta noite.
EliminarCompreendi agora. Um abraço.
EliminarTenho uma granada igual
ResponderEliminarSe não a lançarmos na hora precisa
Não sei se será boa a memória
que de nós guardarão os nossos netos
Abraço largo
onde todos caibam
e
saúde, da boa!
Não se guardam essas coisas em casa.
EliminarUm abraço.
Obrigada
ResponderEliminara sua presença no Ecos faz-me sentir alguém.
um bom domingo
beijo
Visito o seu blogue com muito agrado, publica textos muito bons incluindo os da sua autoria. Agradeço as suas palavras simpáticas.
EliminarUm abraço
Meu Caro Poeta e Amigo
ResponderEliminarUm poema de que não vou comentar na sua estética poética, pois está perfeito.
Duro e intenso.
Mas de meus olhos que já não choram, há muito tempo, as lágrimas rolam gordas e desamparadas.
Bom domingo para si com muita saúde.
:(
Fico sensibilizado com este seu comentário, as suas palavras que dão conta da sua impressão depois de ler o texto, são um incentivo.
EliminarUm abraço, saúde também para si.
Aquela palavra era - é... - mesmo um grito. E um rastilho. E uma espoleta.
ResponderEliminarFico sem mais palavras. Cegou-me a súbita claridade do dia.
Forte abraço, L.
Bonitas as suas palavras. Muito Obrigado.
EliminarUm abraço e saúde para continuarmos.
Queria que os meus olhos soltassem frias lágrimas? Conseguiu
ResponderEliminarQueria que o meu coração ficasse tolhido de tristeza? Conseguiu
Queria que da minha alma saísse um grito de desespero? Conseguiu
Queria que eu sorrisse pelo despoletar da cavilha da granada? Não conseguiu
Poema tão triste como, se calhar, é um retrato do que acontece, por esse mundo fora,
Tenha um dia dos namorados muito feliz
O seu comentário feito poema satisfaz o autor. E agradeço a gentileza.
EliminarBom Dia também para si.
Bom dia Luís, as vezes um grito chama muita mais atenção do que simples palavras. Um ótimo domingo meu grande amigo.
ResponderEliminarBem vindo, agradeço a simpatia das suas palavras.
EliminarUm abraço, bom domingo também.
Um poema que nos rasga por dentro. Que me lembrou a Sepharad de Salvador Espriu, mas também os musseques angolanos em 74/75. A fome, e a morte de mãos dadas.
ResponderEliminarAbraço e saúde
Importante que o texto tenha tocado os leitores. Obrigado por expressar a sua opinião.
EliminarSaúde e um abraço também.
Quantos gritos estarão sufocados, por detrás de cada casa, de cada porta fechada.
ResponderEliminarA fome e a vontade de desistir ou destruir, já é uma realidade cruel.
Mas, depois de uma nuvem escura, há sempre um dia de sol, tenhamos esperança.
Abraço sentido!
A esperança continua a existir, mas há guerra em muitas zonas do mundo. Muito Obrigado pela sua vinda. Agradeço as suas palavras.
EliminarUm abraço, saúde.